segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
segunda-feira, 2 de dezembro de 2013
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Derrapagem
A última semana é a prova cabal de que toda pessoa é um indivíduo político. Nada escapa de algum ideário. Quando os protestos começaram, me vi indeciso frente aos lados. Acima da comoção, a desconfiança de entender o evento em movimento atrapalha qualquer adesão imediata, ainda que os motivos da massa sejam os mesmos que os meus. O receio de me desobedecer: pecar por omissão, caso não participe ou não divulgue algo justo, ou pecar por ação, panfletando por algo injusto? Eu, como qualquer pessoa, respondo por determinados valores quase como uma carteirinha de clube. Tenho rabo preso, sim. A senhora que passou a vida inteira se esquivando de política também responde a um valor. O aluno bagunceiro também tem os seus. Pode soar romanceado, mas é verdade, não estou generalizando. Absolutamente todos foram obrigados a repensar determinados pontos da vida pública, por menos que se importassem com isso. A cobertura da revolta alcançou todos; quanto menor era o compromisso com o mundo, maior era o baque com o tamanho das manifestações. Escolher um lado era outro passo. O convite às ruas estava dado e comparecer era sim uma escolha.
A televisão começou a cobrir as manifestações quando elas passaram a ser diluídas de um ideal único, o que chamou ainda mais gente. A interpretação dos manifestantes iniciais é que o apelo televisivo e a posição panorâmica das objetivas diluíram o movimento. E assim voltamos ao dilema de quem veio primeiro, se foi o ovo ou a galinha. Por eu ter uma maioria de amigos esquerdistas, as críticas que vi nas redes sociais questionavam o movimento ter sido desviado do seu objetivo, que talvez o restauracionismo fosse a melhor saída, restringir os protestos apenas àqueles que já faziam parte (ou, se eu fosse esquerdista, sugeriria embuir os novos manifestantes do mesmo ideário dos primeiros). É óbvio que muitos estavam na rua por comoção da violência do dia 13 e tiveram o final de semana inteiro para serem expostos a todo tipo de motivo para protestar. Colunistas justificaram a turba pelo argumento do cansaço coletivo, o argumento do copo transbordado no leite derramado, o que também é verdade.
A pluralidade de pautas mostrada nos cartazes não marca apenas essas pessoas como manifestantes de butique, mas sim como essas pessoas não sabiam mais o que era protestar, como se vê na festa que virou. Tirando algumas boçalidades ("menos corrupção e mais loiras"), mesmo os cartazes de xingamentos vazios e cartazes sobre os preços abusivos de consumo supérfluo mostram esse despreparo para protestar – mas são totalmente legítimos. Esses "coxinhas" pedem o efeito, e não a causa como prega o método esquerdista tido como cartilha de protesto. Ao pedir por iPhone barato, deve se pedir indiretamente uma reforma tributária, incentivo à indústria nacional, fim do metacapitalismo; essa lista formalizada não entra nos cartazes porque o novo agente social, o imaturo "coxinha", não conhece os meios de exigir ou sequer identifica as causas que geram um preço injusto. As críticas ao "coxinha" são devido a esse caráter alienado estar escancaradamente escrito em cartolina, gritado em palavras de ordem que pedem soluções egoístas e vagas. A recente busca por fazer um protesto apartidário (convertida ou não em gesto antipartidário) expressa a intenção desse novo agente social em permanecer sem rótulos ideológicos cartesianos, querendo provar ser possível ser politizado e apartidário, pautados apenas pela não violência e por soluções práticas imediatas – ainda que não refletidas sobre a viabilidade dessas soluções. Essa "massa nova" não sabe as possíveis consequências disso, desse tal apartidarismo, e reivindica para si o título de "povo" ou "gigante", assim, exclusivo. Em São Paulo, a assertiva do dia 19 de que na segunda-feira, dia 24, a tarifa voltaria ao seu valor foi um gesto de urgência (tardia, caso não seja planejada) em resposta a esse clamor.
A face da classe média manifestante, aquela que também faz parte do apelido "coxinha", é uma maioria que não quer uma polarização, sem saber, ingenuamente, que faz parte de uma. Estar em cima do muro partidário já é ter uma decisão; pode até parecer isento de posição política, mas não assumir uma bandeira cabe sim em uma premissa de partido. Premeditada ou não, a omissão em si já é uma escolha.
Essa ilusão de imparcialidade somada a comoção, mais a imagens e depoimentos de posturas "fascistas" me preocuparam demais. Há algo de podre em mais uma polarização, que por vezes soa fabricada, mas não sei delimitar ao certo com medo de apoiar teorias da conspiração – estas que ultimamente ganham muita força. Essa preocupação não cabe nesse texto e deixo para o próximo. Sei que, nesse cenário, algo me diverte muito, apesar das rugas e das consequências negativas do meu riso. É o sentimento de exclusividade, de que alguns "nunca dormiram" enquanto a turba coxinha lidera os números em marcha e delira com "o povo acordou". O copyright hipster do movimento imediatamente foi justificado pela popularização dos protestos e pelas "denúncias" de direitistas infiltrados como quem aponta um vândalo no meio de uma multidão pacifista.
Pode ser verdade, não descarto, apenas duvido e questiono se isso é nocivo ou se assim deveria ser tratado. Ora, se fosse verdade, entendo que a presença direitista em um movimento de origem esquerdista nada mais seria que a derrapagem: os jacobinos de outrora se tornaram girondinos e hoje sofrem do mesmo mal que fizeram seus rivais sofrerem; a "revolução" ia bem, mas minguou na mão dos recém-chegados que destoavam tanto dos pioneiros. Bem feito e obrigado (ainda vou me arrepender disso) por começar.
sexta-feira, 21 de junho de 2013
Idade das Trevas: crie a sua!
Tacar pedra em policiais é fichinha. Pichar ônibus, saquear lojas, parar o trânsito. Tudo ingênuo. Sei que estou privilegiando uma exceção nesse instante de “manifestações pacíficas”, mas nada é pior do que privilegiar uma maioria, que no caso desses dias são os manifestantes.
Ativistas virtuais se dividem entre o amor, a esperança de um novo país, interesses egoístas, exigências de direito autoral por protestos, rótulos de mídia conservadora, bando de baderneiros, massas de manobra, ilusões apartidárias, esquerda e direita (a gosto) oportunistas, medinho de golpes etc. Enfim, alguma coisa está dentro da ordem.
Para impedir o pior, faça o seu próprio. Algumas dicas:
A tarifa de luz caiu? Talvez não o bastante. Lembrando que é época de festa junina e vendem muitos fogos. Vamos pensar em 5 mil pessoas, coisa pouca perto dos números aí. Se esses 5 mil se dispersassem pelas ruas e soltassem um "12 tiros" em cada transformador? Os carros e técnicos não chegariam nos pontos danificados e não teriam peças suficientes para reposição nos postes.
Tudo no escuro. Toque de recolher. Além das terríveis consequências, a criatividade doentia pode ir mais longe: as luzes acesas por geradores iam estar ali, nas janelas, apontando quais alvos a turba deve atacar num ódio de classes. É só saber qual bairro marcar o encontro do Ato.
Outra dica? Estamos longe do verão, mas é importante pensar no futuro. Janeiro chove muito. Peguem as lixeiras e entupam os bueiros. Claro que isso ia atrapalhar a vida de gente mais simples, mas há um alvo específico no movimento?
Há poucos meses, as operadoras de telefonia celular prometeram melhorias em seus serviços. Sabemos que celular deixou de ser luxo e é uma necessidade. Sem fio e, caso não haja luz, pode ainda ter bateria. E se não houver sinal? As antenas estão por aí; empreguem a força necessária nos portões e arrebentem uma a uma.
A mesma força pode chutar alternadamente os portões da companhia de abastecimento de água. Nunca entrei numa e não sei se há algum sistema de segurança. Mas na hora saberiam o que fazer.
Você, que delira babando, pirando, tocando fogo. Você, suprassumo da civilização. Tem medo de golpe comunista? Rotula qualquer coisa oposta a você de "fascista" e "corrupta"?
Não perca a chance de criar sua própria idade das trevas.
segunda-feira, 17 de junho de 2013
Revolta do Vinagre
A Revolta do Vinagre começou em junho de 2013. Assim como a proporção que o movimento tomou até hoje, dia 17, os motivos de seu início são muitos, dispersos e escusos, não parando nos vinte centavos de aumento da tarifa do transporte público paulistano.
A comoção gerada nas redes sociais tem o mesmo efeito imediato dos escândalos criminais do país na televisão. A diferença está na mobilização que extrapola o papo de bar e fica na sua cabeça antes de dormir; no quanto sua indignação, tão particular, pode ser usada para mudar algo – ou, na pior das hipóteses, ser usada para derrubar uma ordem vigente em prol de um projeto político que você abomina. Estou vacinado contra essas comoções justamente por conviver com revoltas pasteurizadas que possuem várias facetas (entre as quais muitas discordo mas defendo) e no fim, reunidas, compõem uma plataforma tão coesa que tem até nome. A despeito disso, que em nada impactam no espaço em que são debatidas, essas ideias passaram a ganhar uma importância maior com o alcance da mídia atual mais poderosa e mais desacreditada que existe: a internet.
Toda tropa tem seu estandarte. Por mais que você queira, esse movimento não é apartidário. Se fosse, não haveria necessidade de erguer bandeiras de partidos como as que você viu nas fotos, as mesmas que vi pessoalmente na última quinta-feira, dia 13. Não viva essa ilusão.
As divergências internas do movimento foram usadas pela classe média coxinha (repito, “coxinha”, e não necessariamente de direita, por favor) para afagar suas posturas elitistas. A tal divergência (que virou desculpa) foi o vandalismo contra o patrimônio público. Sua função é a mesma de parar uma avenida importante: chamar atenção inserindo os transeuntes e telespectadores na realidade, fora da rotina casa-trabalho/escola-casa mais tevê – daí a necessidade de parar locais movimentados e não uma viela qualquer. Não vou discutir depredação, porque direito à propriedade e usufruto de bem público é bom senso e quem lê esse blog sabe o que acho disso.¹
Quer ir ao protesto? Vá, mas saiba o motivo de sua ida. Escolhi ir porque o movimento não tem forma, por maior que seja o esforço da mídia em rotular seus membros com nomes ou fotografando um gênero (jovem/universitário/de humanas/revoltado). Quem já foi sabe que não é só isso. A polícia já assumiu a dificuldade em traçar perfis fiéis dos participantes, devido justamente à pluralidade dos motivos de protesto, que unem pessoas de todo tipo – incluindo aqueles que me têm como rival.
Vá, mas por um motivo racional e não por comoção. Se você lê esse blog e só encontra bobagem aqui, provavelmente deve apoiar as bandeiras na frente. Pois bem, vá de consciência limpa. Se não quer ir porque não vê algo dando liga a tudo isso, ótimo! Vou te contar um segredo: também concordo contigo. Ainda que sejam motivos plausíveis, não há elo prático entre eles. Qualquer reivindicação que hoje move um a um para o Largo da Batata são vontades ansiosas para virarem algo. Tenho consciência que minha presença pode ser usada contra o que acredito, mas já refleti demais sobre o assunto e assinei com meu sangue. Eu jamais perderia a chance de estar ao lado de gente tão querida em algo que finalmente concordamos em apoiar.
¹ Lembre de quando era criança e via o telefone de um orelhão fora do gancho. Sentiu piscar um siricutico pra colocar o telefone no seu lugar? Imagina uma lixeira jogada no chão. Claro que depredações não justificam nada e só fazem qualquer movimento perder apoio do público, mas acredite, o vandalismo é o menor dos males desses protestos. É importante ressaltar que é exatamente esse tipo de conduta que a polícia precisa para agir. Aprenda de uma vez: por mais que policiais estejam propensos a abuso de autoridade, eles são funcionários títeres de táticas e ordens. Pra isso recebem holerite. Tua revolta pessoal pode ser direcionada a um ou outro, pode até ser generalizada por acreditar que a corporação policial fornece as condições ideiais para repressão física, mas tenha em mente que sua revolta física e permanência no front em nada adiantam contra quem realmente os ordena. Se você for para um protesto para depredar, saiba que a maioria discorda de você; não abuse da compreensão e passividade dos seus colegas.
sexta-feira, 31 de maio de 2013
Panaceia geral
A dor passou. Licenciado em opinião geral. Membro assalariado do clube das mesas redondas. Integrante da parcela da classe média diplomada. Experiente em debates e pesquisas de internet e falso diletante. Referência na articulação de argumentos. Bacharel em sinceridade das aparências.
Ali se fintavam os olhos sorridentes através do currículo. Era jovem e sempre será jovem; podia estar grisalho, mas ainda era jovem. Exalava novidade sentado no divã do emprego. Mais um sujeito único, de uma singularidade idêntica a do candidato anterior. Dizia:
Alguns mais tímidos apreciam consumir opiniões na privacidade do lar. Muitas vezes isso me basta, pois cansa abrir o ziper e sair balançando meus argumentos por aí. Sou antenado em tecnologia, que em lapsos de ingratidão critico por alienar as pessoas curvadas sobre telinhas. Apenas reconheço a semelhança do efeito destas com o efeito dos livros: pessoas andando cabisbaixas vivendo um mundo de imaginação.
Conheço uns que também opinam sobre tudo e juntos nos sentimos bem, como que sentados em círculos, dividindo esses anseios. Mais um dia. Luto em grupo para fazer do mundo um lugar melhor e, ainda que fracasse, levo no peito a conquista individual de me sentir saciado pela arte de discutir e de opor egos na internet.
Metodologia? XGH Sócio-Comparativo. No mercado, análises profundas e gestão de risco são contraproducentes. Propus o óbvio porque o erro óbvio da nossa sociedade nos agride. Traçar propostas me rendeu alguns lucros como estagiário e atingi a meta anual. Já já explico como.
No fim, o simples exercício de justapor ideias me faz melhor, aplaca minha amarga necessidade, aquele comichão se revirando no âmago para rabiscar opiniões qual óleo sobre tela e emoldurar em 19 polegadas. Já cogitei cobrar ingresso com uma palestra motivacional, stand up comedy, consultoria de assistência. Por enquanto fico como colunista freelancer de rede social.
Não tenho vícios. Cultivo alguns hábitos que vão além de chocolate ou cervejinha ou mesmo daquele happy hour acadêmico. Ninguém é de ferro. Antes eu listava os males do mundo e os criticava um a um. Fui mais longe e hoje minha distração é o que chamo de “habeas corpus ideológico”.
Aí é o ponto principal do meu portfólio.
Com licença, te mostro onde.
Aí, ó, destacado em negrito entre “Descrição do cargo anterior” e “Informações adicionais”.
Percebi que estes males do mundo são problemas apenas do ser humano. Não, não dividi com ninguém até o resultado exibir meu sucesso e lançar as horas em planilha. Exploração de recursos, estupros, intolerância (reflexos em maior escala de egoísmo, inveja e cobiça) são tão íntimos quanto dedo no nariz, coçar o saco ou tirar discretamente a calcinha da bunda. Após esquadrinhar os detalhes, compilei tudo isso que é da cabeça e da interação entre pessoas e fiz o caminho inverso: engarrafei e rotulei. Capitalismo, cristianismo, família e propriedade; tudo institucionalizado em gestores corruptos.
Descriei necessidades. E eu era só o trainee. Não confunda com teoria em cima de teoria. As psicologias e legalismos foram empregados, claro, mas apenas quando convinha. Sempre um tema humanitário com a devida superficialidade corporativa em uma lauda e com limite de toques.
A maldade antes tinha muitos rostos e agora, graças a esse rótulo ideológico, não tem nenhum. Foi minha fina obra deste portfólio tal qual o emplasto que jamais existiu. Acima das filosofias, de um deus que fiz ausente, de tradições quadradas. Inovei com o novo – com o perdão do pleonasmo. A nossa maldade, tão nossa e agora encarnada nos outros, sempre existiu. Já estava lá nas páginas, como um nome nos livros, aquela teoria toda. Hoje circula com o sentido que dei na canetada. Num golpe só, sem sobrecarregar o meu centro de custo, juntei todos os meus problemas pessoais e dos demais colaboradores, dei um nome e crucifiquei para pagar pelos pecados da humanidade. Todos os deslizes e premeditações do mundo, todos juntos num só corpo, ressignificado num par de palavras, expiados para sempre.
Afinal, tudo é passível de atualização, o novo silencia o seu oponente antecessor e nada é eterno o bastante para ser imutável. Até meus erros.
Aquele jovem foi admitido, recebeu aumento e hoje ele tem mais.
quinta-feira, 30 de maio de 2013
Eles não pensam naquilo
Assim como ver transmissão de esportes internacionais, acompanhar uma eleição de outro país é uma tarefa ingrata. Comecei a pensar nisso ao ver notícias do exterior e as reações de formadores de opinião daqui.
Todos se lembram de quando eram pequenos e de como ignoravam telejornais – ninguém é Lisa Simpson ou Mafalda do Quino. Hoje restam alguns cadernos de jornal que despertam essa ignorância infantil nos adultos.
O brasileiro que larga o horóscopo e se arrisca a ler notícias em inglês se assusta com a mídia estrangeira. Percebe que a política e a economia brasileiras são descritas ao avesso do que se faz por aqui. Mesmo que mais aproveite seu inglês fluente para ver seriados sem legenda – o que também faço e não recrimino –, o sujeito tem chance de se assustar ou desacreditar e às vezes quer morrer quando um jornalista gringo diverge dos nossos grandes veículos de informação, indo de encontro ao povão, ou diverge dos portais de notícia "esclarecidos", indo de encontro com a classe média "engajada".
Essa fronteira entre as mídias é justificável pela distância. Ainda que perca muitos detalhes, perceptíveis apenas quando se está próximo, o observador distante tem o panorama em seu benefício — e aqueles detalhes passam a ser somente distrações na percepção do todo. Esse benefício faz com que o texto seja mais seco, impessoal e com menos indignação, na contramão do que vê lê no Brasil. A ausência da visão próxima auxilia a análise e, apesar disso, faz desta incompleta, assim como uma análise qualquer, sujeita a erros. No nosso lado da fronteira, é exatamente o que fazemos ao abordar uma eleição que ocorre em outro país. Não é tão arriscado dar ouvidos aos gringos.
A trajetória de um ás do drible, a campanha de uma seleção em um dado campeonato europeu, as probabilidades do mercado futebolístico; são miudezas que se enquadram nessa teoria da distância. No final, o conhecimento desse campo de conhecimento se resume a especulações de mesa redonda e, junto da engenharia de trânsito, astrologia e a meteorologia, compõe uma das ciências do acaso.
Exemplos melhores para reforçar essa analogia são os demais esportes. Mais grave do que futebol, ler ou falar sobre política estrangeira no Brasil beira a citar grandes atletas do tiro ao alvo ou rasgar o gogó discutindo regras de bocha. Não se trata da relevância desses assuntos, o sexo dos anjos; mas tamanha é a distância e a falta de vontade de se ter conhecimento sobre o assunto que a análise vira besteira, verborragia de vozes que se sobrepõem.
É fácil ir comprar pão e achar um Safatle por esquina, um Jabor numa banca, um Sader sentado na praça. Vai atravessar a rua e olha pros dois lados: de um é o Neto e o Galvão Bueno discutindo culinária, do outro é a Ana Maria Braga e o Louro José falando sobre desemprego. Aí aperta o passo pra chegar logo em casa e na porta está o Bial arrotando platões. É um sintoma sério começar a compactuar com esses formadores de opinião.
Vários tentam debater o tema tendo por base o “esporte” que mais conhecem: literatura, teologia, história, estatística, sociologia, linguística (como eu), mas raramente ciência política ou economia. Alguns grupos de leigos se atrevem e falham terrivelmente, mas em geral não há quem tenha critério para reconhecer essa falha nas tentativas; e assim, todos acatam as suposições.
quarta-feira, 29 de maio de 2013
Os Intocáveis
"Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar"Chico Buarque em "Apesar de Você"
A revisão da lei da anistia parece ser ilogicamente unilateral. Só parece, pois tem seus motivos para assim ser conduzida.
Vamos cogitar a bilateralidade dessa revisão proposta pela Comissão da Verdade. Que nos nossos sonhos mais otimistas essa comissão contemple o julgamento do terrorismo de esquerda – como se luta armada, quando mistura pólvora e ideais, deixasse de ser justificável. Dentro disso, em números razoavelmente acessíveis, podemos arriscar que o regime militar matou e torturou muito mais que a insurgência subversiva – ignorando, claro, as invasões de propriedade no nordeste, sabotagens de plantações, os crimes de guerra do Araguaia etc, fatos que não foram sistematicamente apurados depois da abertura política do país.
No período 1964-1984, se a esquerda é inferior em números no ranking de crimes, em tese os subversivos seriam uns gatos pingados. Daí a ilógica, presente mesmo sem a bilateralidade que propus aqui.
Com base nisso, pergunto: quem seriam os investigados? Dentre os subversivos, quem são os responsáveis pelos sequestros, assaltos a bancos, assassinatos, façanhas tão inexpressivas frente aos homicídios, exílios, estupros, censuras e tantos outros feitos opressores que os militares cometeram?
A pergunta vale um milhão. Vale pro resto da América Latina.
Só pra citar alguns: um bispo, um pastor de lhamas, um casal de advogados, dois tenentes-coronéis, um motorista de ônibus, dois economistas, um vinicultor, um torneiro mecânico e uma médica. Hoje não exercem essas funções e por isso ninguém está disposto a peitar essa gente.
Apesar de parecerem ideologicamente opostos, regimes fascistas e socialistas se assemelham em tudo. Se pararmos de culpar um lado só, não sentimos diferença entre a suástica e a foice com martelo.
terça-feira, 28 de maio de 2013
Represent Cuba
"Dans ce meilleur des mondes possibles, tout est au mieux."
Candide, de Voltaire
Já fazia tempo que não se via tantos defensores de Cuba. Em visita recente ao Brasil, a filóloga cubana Yoani Sánchez foi repudiada por muitos e ovacionada por alguns. Esses são os benefícios da democracia, já pegando emprestado o teor que ela mesma assumia para se defender e legitimar as manifestações contra ela. Yoani é apontada como caluniadora.
As comparações são muitas entre Yoani Sánchez e o ciberativista do WikiLeaks Julian Assange. Não é necessário nenhum esforço em uma busca no Google para ver como muitos diminuem o papel da cubana e enaltecem o sueco por ele enfrentar grandes interesses capitalistas. Só questiono o WikiLeaks pela origem de seu conteúdo que vaza de todo lugar do planeta. Tudo soa muito inverossímil, a contrário de uma cidadã de um dado país, que vive os fatos, consulta documentos e recebe relatos para publicar no seu blog Generación Y.
Já ela é um contrassenso. Das duas, uma:
- Trata-se de uma mentirosa, talvez financiada por algum país que queira destruir um foco socialista; em tese, Cuba seria um país democrático, livre e ótimo para se viver, pois se a ilha fosse como a filóloga afirma em seu blog, o governo cubano a executaria ou, na melhor das hipóteses, não lhe daria voz;
- Ela, verdadeira em suas afirmações ou não, teria permissão do governo cubano para fazer suas declarações, que estariam de acordo com os moldes cubanos de censura – dentro de uma margem previsível de tolerância – e Cuba supostamente seria muito pior do que ela descreve.
- Bônus: há uma terceira opção, claro, que admite que ela esteja certa em partes; o regime castrista oprime, mas não é tão terrível, pois deixou escapulir a blogueira. ¡Es que se me chispoteó!
Se Yoani Sánchez se enquadrasse na primeira suposição – a opção mais confortável para defesa dos irmãos Castro –, ela seria o que George Orwell chamou em seu “1984” de despessoa – convidada a “deixar de existir”, “suicidada”.
Como ela não tratou de “desexistir”, pode-se inferir que só a segunda opção é possível.
Na ocasião de sua visita, pipocaram na rede trocentas matérias desmerecendo a blogueira. Era ataque vindo de tudo que é lado. O ataque mais agudo foi uma idolatrada entrevista de Yoani Sánchez com o francês Salim Lamrani. Está lá pra quem quiser ler. A entrevista possui todos os requintes de uma falsa interlocução: demérito, desconstrução da autoridade alheia, apresentação de fatos contrários sem base, carteirada e testemunho ocular questionável.
A primeira parte da entrevista se destina a denegrir a entrevistada. É a tática de desqualificar moral ou intelectualmente, ridicularizar para retirar o argumento de autoridade do indivíduo. Pouco existe de um verdadeiro embate de ideias. No lugar de enaltecer os próprios valores e expressá-los, rebaixa-se o valor dos outros.
Quem é atingido por esse tipo de texto? Gente que trocou o vão do MASP para protestar em teclado QWERTY; ou melhor dizendo, o espectro que compreende desde os usuários do Acessa São Paulo até os tablets com senha do wi-fi do Starbucks. Fora disso, todos estão muito ocupados cumprindo o seu papel de “não se envolver com política” ou expondo suas opiniões vendo o programa do Datena.
Igual ao que vi na entrevista do Pr. Silas Malafaia no programa De Frente com Gabi, essa entrevista deixou os dois lados satisfeitos. Quem é pró-Fidel achou que a Yoani é fraquinha, carta na manga do Tio Sam, uma versão macartista de Assange. Quem é contra o atual governo de Cuba percebeu que a entrevistada estava sendo encurralada com perguntas idiotas para proteger um ideal.
Tenho a impressão de que isso é manobra para “caosar”, jogar todos contra todos e ver o cerco fechando. A intenção pode não ser essa e tampouco há meios de provar a crença de um ódio mútuo teleguiado; mas o efeito é claro, é exatamente esse. No cabo-de-guerra, não tem como não irritar os dois lados.
Depois de alguns meses, sinto alguma pontada de otimismo dentro daquilo que dizem sobre o brasileiro “ter memória fraca”. Na melhor das hipóteses, Dr. Pangloss diria que “vivemos no melhor dos mundos possíveis e tudo está para o melhor”; as pessoas, discordando umas das outras ou não, agora refletem sobre Cuba e, se refletiram equívocos, torço para que já tenham esquecido. E voltamos ao Curdistão.
sábado, 4 de maio de 2013
Extra Ecclesiam nulla salus
Sobre Roberto Francisco Daniel? Ou mudou de ideia sobre sua fé ou nunca foi católico. Fico com a segunda. Ainda não se converteu.
Mais um arregimentado pelas hostes de Leonardo Boff e Frei Betto.
Pôster do Dom Hélder Câmara no quarto.
segunda-feira, 22 de abril de 2013
Tropiquei
singrou o sertão de veias abertas
a caldeira ficou no caminho
caiu a chaminé e do chão não saiu mais
fazia sol
e pra sempre
minha pele mudou de cor no suor da tua
os tons molhados escorregavam à força
era o facão sem fio fazendo picada
descalço agora
perdi o fio da meada
abrindo, fugindo, indo fundo
mundo afora, adentro
fiz queimar rio e o sol na moleira
brindamos vinho
toda prosa, minha língua hoje é transa
sentiu o doce e o ranço de caium e mel
fiz um sinal e ali tropiquei
terça-feira, 16 de abril de 2013
My ass über alles
Vamos chover no molhado, já que pra muitos talvez não esteja molhado o bastante: o descontentamento com Marco Feliciano é o resultado do ódio pelo outro.
Novamente, dessa vez por todas. Como todos os outros deputados, ele foi eleito legitimamente. Em tese, não necessita de recontagem de votos. Aquele que votou nele obviamente acreditava que Feliciano pudesse ser um bom deputado representando os valores de quem votou etc, assim como quem votou no Tiririca acreditava que em Brasília faltava palhaçada.
Achou ruim? Então você é contra a democracia. Você quer golpe. Derrubar alguém de seu cargo é silenciar o grupo de pressão que ele representa, ou seja, os evangélicos – e nisso todos cristãos entram na roda. Se ele toma alguma medida inconstitucional ou faz besteira, ele pode ser "demitido por justa causa" (lembrando que ocupa um cargo público), parecido com o que mereceu Collor com o quase-impeachment de 1992.
É mais simples de se entender do que eleição de reitor da USP. Aliás, se você é aluno de lá e não quer outro reitor como o João Grandino Rodas, esse problema pode ser resolvido se o governador eleito (que escolhe o reitor dentro de uma lista de três candidatos selecionados previamente pelo Conselho Universitário) for petista: aí até sindicalista pode ser o novo reitor, se você quiser. É só você eleger um petista. Pronto, você já está representado.
Agora, se seu grupo de pressão é pequeno e não consegue se sobrepor politicamente, só resta puxar o tapete dos demais. Reinvente o conceito de "minoria" e se ponha nesse lugar. Se jogue no mar e grite "socorro", cave falta, grite "pênalti". Pode espernear, ganhar as redes sociais, as ruas. Corra atrás do osso.
Como muitos, discordo desse deputado e por mim ele não estaria lá. Sequer essa comissão teria esse nome: sei que "Direitos Humanos" é hiperônimo de "Direito de Minorias", e compôr uma minoria não te exclui de ser um humano. Obviamente, para quem o quer fora a qualquer custo, a intolerância e outras questões ideológicas são atentados muito maiores à política do que corrupção ou formação de quadrilha. Opinião da intolerância é tão maior que a corrupção que se deixassem teria fogueira, forca ou guilhotina. Todos babando ensandecidos com os olhos veiúdos pra urrar a morte do "intolerante" em rede nacional.
Mas vamos falar de coisa boa
A multidão de católicos não-praticantes caiu no papo: fez questão de esquecer tudo da catequese para perpetuar a nova releitura laica da cristandade.
O deputado Marco Feliciano é pastor da Assembleia de Deus. A sua fé se define por aquilo que acredita, por tudo que não aceita mas tolera e também se define por aquilo que condena.
Se esse pastor achasse que comer brócolis leva pro inferno, a denominação dele ensinasse assim e os fiéis seguissem, é óbvio que rotulariam todos que gostam dessa verdura de filho do capiroto, mesmo que fosse um ex-beatle¹. E vai achar razões para acreditar nisso, à revelia do certo ou do errado.
A questão não é ele condenar católicos. Outras denominações religiosas (e políticas) também condenam outros por muito menos e não são fundamentalistas, panfletárias ou proselitistas. Os próprios católicos, por exemplo, como também petistas e tucanos. O ponto de atenção é que se use um vídeo dele em pregação, ele "na qualidade de pastor"², para delimitar uma postura dele como deputado e promover o demérito de sua integridade.
Como político, Marco Feliciano já constrói provas suficientes contra si mesmo e não precisa desse tipo de ataque. Arrisco-me a dizer que ele talvez o faça até como cristão, mas até que não atinja a esfera pública, sua corrupção como pastor é um problema a ser resolvido em sua comunidade. Foi assim com Jesus entre os judeus.
Feliciano afirmou que antes de ser eleito, a CDHM era possuída por Satanás e coisas do tipo. Bem sabe ele que isso não se diz no espaço em que está, ainda que tenha direito de exercício de sua fé. Ali ele cumpre um papel público e responde a um Estado laico.
¹ Assista ao vídeo em que Pr. Marco Feliciano, em pregação, justifica o assassinato de John Lennon como gesto da ira de Deus.
² Aqui me refiro às palavras do Pr. Silas Malafaia em um texto que publicou recentemente na Folha Online.
sábado, 13 de abril de 2013
Rubro arco-íris
No íntimo, sei que a completude de um casal depende muito da criação de filhos. Por questões pessoais minhas – que seriam facilmente derrubadas pela facilidade de adoção de crianças – entendo o relacionamento gay como uma interação incompleta, além dos habituais valores cristãos que tenho, os mesmos valores que me garantem a tolerância, amizade e bom trato com pessoas que caminham para um ponto oposto ao meu.
Pouco antes da exposição midiática da Daniela Mercury, outra cantora, Joelma da Banda Calypso, expôs seus princípios sobre um filho seu e um possível ato deste sair do armário. Dificilmente ela encararia com a mesma naturalidade que se encara por aí, entre as pessoas que defendem com unhas e dentes as causas gay e de demais minorias. Ela é evangélica.
Deve-se considerar que Joelma responde a valores cristãos, e com isso também segue uma cartilha que carrega um calvário inteiro dessa fé, que atualmente faz frente a Calígulas, Cláudios e Neros dispostos a incendiarem a própria casa e causa (como militantes que criticam padres homossexuais ao invés de também inserí-los no portfolio de minorias).
Defendo as duas. E explico o porquê.
A Joelma, além de seu direito de fé resguardado pela lei, tem direito de liberdade de pensar o que é melhor para seus filhos desde que não infrinja qualquer outra prescrição também legal, como o tão mencionado Estatuto da Criança e do Adolescente, independentemente do que se acha ou se prega por aí. Se nesse afã por privilégios de minorias ela quiser que as filhas passem a usar burca por algum valor de conservação de costumes ou por alguma interpretação bíblica tradicional que liga o profeta Maomé a Jesus, tudo bem, uma vez que as filhas estejam sobre a sua tutela e ela, melhor que o Estado, as conhece e pode julgar o que lhes é mais adequado. Como meter um sarrafo, por exemplo.
Ela é uma figura pública e sua declaração tem um impacto que extrapola a posição política, religiosa ou familiar. Por ser pop, sua opinião tem forte influência sobre seu público ou sobre quem se identifica com sua origem social. Isso em si não é o problema, pois acontece na classe média (com artistas de classe média) etc. A pedra no sapato está na distância entre ser evangélico conservador e ter origem simples, pobre, gostar de forró paraense. Pessoas que normalmente não concordariam com a Joelma, e apesar disso são seus fãs, estariam inclinados a assumir o seu lado.
A inversa, igualmente verdadeira, não é um problema frente ao novo paradigma gayzista da sociedade. Daniela Mercury teve um "ato de coragem" e não "um ato irresponsável de ser uma artista com muitos fãs que não pensou que estes podem seguir cegamente sua posição." Não há segredo em perceber o que há por trás desse gesto. Tudo é em vão, desde as tentativas banais da mídia conservadora em diminuir a atitude de Daniela, até a súbita legião de fãs que ela conquistou só por assumir uma bandeira gay. Respeito e apoio a decisão da cantora e fico muito feliz em saber que, apesar da pressão "religiosa" em defender leis exclusivistas, homossexuais têm seus direitos civis (repito, civis) garantidos. O homossexualismo deve sim lutar pelo direito de casamento civil. Apenas não concordo com o revanchismo que essa luta assume quando se fincam bandeiras nessa causa, pois a garantia de direitos aos homossexuais vira mero instrumento de revolução – fato que muitos gays não percebem, para a tristeza geral.
E por que defendo a Daniela? Simples. Por ser cristão, entendo que não há melhor testemunho do que a vida da pessoa. Não conheço sua rotina, sua idoneidade; vim de uma escola que prega que uma mão não mostra à outra o que faz, fato contrário ao apelo midiático da cantora; mas ainda assim reconheço em seu gesto algo muito sincero. Não faço dela melhor nem pior por isso, a contrário do que vejo por aí, com pessoas que se agarram nela só por ser gay. Defendo a Daniela porque sua vida correspondeu ao que acredita. Pensando nisso, não creio que sinceridade valha mais que valores sóbrios, mas percebo em seu gesto a prova transparente que pode fazer libertários "conservadores" como eu (perdão pelo paradoxo) repensarem toda a questão.
E já que ela usou um relacionamento pessoal como panfleto de mass media, eu ficaria muito feliz que seu gesto também gerasse reflexão nas bandeiras gayzistas, que repensassem seus valores revolucionários; que passeata esquerdista, satanização de pastores ou credos, intervenção na vida dos outros quanto ao dízimo, enaltecimento de impostos para políticas públicas muito superiores à ajuda religiosa, revisionismos bíblicos e afins, tudo fosse finalmente encarado como futilidades que só fazem água. Por que privilegiar uma cor entre tantas que compõem a bandeira gay?
Fora disso, todo cristão que acha que tem de levantar piquete não passa de Judas. Evangelho não precisa de defesa. Abra a caixa registradora, pegue suas trinta moedas e vaze daqui.
segunda-feira, 8 de abril de 2013
Nota de falecimento a Thatcher
No aniversário de quatro anos do tem que falar, dez anos do antigo "O Livro dos Meus Dias" e um mês depois da morte de um déspota, sonhei com a presidente Dilma Rousseff se pronunciando sobre a morte de hoje:

"Hoje é um dia de luto para todo o país. A primeira mulher que me inspirou na política, que mostrou ser possível uma figura feminina íntegra subir tantos degraus com braço forte. Foi Margaret Thatcher que me provou que luta e revolução não são necessariamente pegar em armas nem propagar falsas culturas, tampouco incitar ódio entre classes. Margaret Thatcher livrou seu país do mesmo pesadelo que nós, brasileiros, estaríamos prestes a viver a partir de 1964; a diferença foi que o Brasil nunca contou com alguém à altura de Thatcher para impedir o socialismo, e assim cometemos o nosso maior erro contra a democracia e a liberdade. Para atravessar imune a cortina de ferro, apenas aquela dama tinha o mesmo peso, fio e força de seu obstáculo.
Os grandes se foram. Após Chávez, vai Thatcher. Só consigo ver a perda de hoje como o preço por um dia desejarmos o fim daquele homem. Essa troca para expurgar os males desse século saiu muito cara, uma vez que seu grande trabalho foi realizado no século passado. Descanse, Thatcher."
domingo, 7 de abril de 2013
Um sorriso nos lábios
"E aliás, cá pra nós, até o mais desandado dá um tempo na função, quando percebe que é amado.
E as pessoas se olham e não se falam, se esbarram na rua e se maltratam. Usam a desculpa de que nem Cristo agradou. Falô! Cê vai querer mesmo se comparar com o Senhor?"
Criolo em "Ainda Há Tempo"
É domingo e eu estava no metrô muito cheio. O transporte público é um imenso laboratório, pois muita gente fica mais próxima fisicamente de um desconhecido do que dos filhos, da esposa, do marido. Enfim, num momento em que as portas foram seguradas, a maquinista deu seu aviso de jeito engraçado, pausado e bem silabado, de forma que o trem inteiro riu e eu também, até porque foi uma situação inesperada. E se fosse segunda-feira?
O riso salva do mau humor. Penso que as paixões são reguladas como um copo d'água usado para limpar o pincel: cada cor flutuando é uma sensação a qual se foi exposta e são anuladas quando decantam ao fundo. A crosta que se forma embaixo é a ganga do garimpo de experiências que vivemos, é a soma de decepções e sucessos que nos tornam sonhadores, ranzinzas, ressabiados, valentes etc. Não é nenhuma novidade científica, não estou inventando a roda com isso: a bile negra, o spleen e os hoje tão famosos "neurotransmissores" teorizam sobre o tema.
O riso no metrô na segunda-feira até poderia instigar relações mais harmônicas entre as pessoas. Faz de você mais arlecchino, clown, pierrot, mais colombina. Mas ainda que resolva a questão do "pratique a cortesia", o riso momentâneo nos salvaria dos problemas que nos fazem mal humorados, tristes, irritados na rotina? Uma conta, um conserto ou o próprio transporte público?
É a cultura do não-atrito, que despreza variáveis e arredonda pra cima os ânimos coletivos. Gravidade é dez, pi é três e não há moeda de um centavo no troco. Essa cultura não necessariamente acarreta em sorrisos falsos ou sinceros, apenas amansa todos ao mesmo tempo, para que eu e você nos sintamos mais "civilizados". A classe média não gosta de fazer barraco, mas enche o peito no anonimato do telefone para se esguelar no SAC de algum serviço mal feito.
Essa mansidão é vasta, é alarmante e está no ambiente corporativo, acadêmico, religioso etc. É um comportamento que está na rua e já entrou na sua casa. Convence todos de que bater de frente não compensa, é se arriscar por pouco, de que isso não é uma atitude cristã. É a geração dos bundões que sorriem quando convém e maltratam quando dá na tampa e ninguém está vendo; que são cavaleiros valorosos online que não sustentam a mesma força num papo de bar; que se dizem tolerantes segurando risada numa piada preconceituosa, acreditando que livram a sociedade dos estereótipos, que suas risadas numa piadinha maldosa reforça esse preconceito; gente que gosta de sintetizar toda sua racionalidade com uma tirinha, um même que alguém aí fez. Todos de parabéns.
Por um lado, o riso não é a cura de tudo: sorrir e se calar frente a qualquer adversidade é dissimulação, é aprender a ser falso e acumular ódio para espalhar aos outros ou arquitetar a revanche. Por outro, rosnar para todo e qualquer movimento brusco é ser estúpido. Partir pro braço é ter preguiça de articular argumento. Ser crítico e exigente não pressupõe ser mal-educado.
O saldo que faço do riso é que ele ajuda a derrubar a primeira barreira entre as pessoas. Só não vire palhaço.
segunda-feira, 25 de março de 2013
Empacou
Queria se imaginar numa cadeira de balanço sem sossego, xingando da varanda. Plantar a carranca do lado da porta, uma espada-de-são-jorge e comigo-ninguém-pode só por causa do nome, citar os profetas, as vozes-contraste barradas do cânone. Reclamar das notícias na banqueta do boteco ao tragar a aguardente. Jogar tranca, buraco, truco, gritar doze, meio pau, fazer a dama, derrubar o rei na praça. Tinha de ter força para aposentar tudo que estava escancarado, tudo que se vê por aí. Preferir os miolos no meio-fio a ter de abrir a mente. Ver o movimento, a meninada rebolando em vão, de um lado pro outro, que beleza, escarrar ao volante. Queria era criar caso. Ao invés disso, lá está confortável a poltrona, com um dos quatro pés meio capenga. Não tem varanda nem carro, porque seu bolso também se calou. Tudo o que esse velho consegue é aproveitar o novo, as ninharias que até ontem estavam num camelô, que alternam de trono a cada semana. A fila do banco e da fézinha, a fila para comprar patinho moído, tudo no bolso, às vezes no pulso, nos olhos, no rabo. Cochicha cristos, reza assobiando uns ss cabisbaixos, um pai-nosso em pózinho diluído numa água quente sem cor. Ignorou os fatos para manter e lamber o afeto pelas pessoas. De nada adiantou se trair. Logo se omitiu, conservou os queridos, aqueles que cada vez mais aquiesciam com a roda da fortuna para depois perder um a um no ar. Eram os que franziam o cenho e rosnavam pelo osso. O velho sempre soube que todos estavam juntos no mesmo quintal, atrás da grade do portão. Só restava ladrar e ladrar e ladrar enquanto as coleiras cheiravam e mijavam no poste em frente. Mesmerizado pelo todo, ainda que abrissem o portão, o velho ia se deter ali babando, com medinho do desconhecido, acostumado ao mesmo, a latir pelo mesmo, a mesmar escondido atrás da cortina de ideias que reiteram o mundo. Gosta de achar shakespeares em novela, como quem faz palavras cruzadas, cercado pelos livros que não leu. A diversidade logo ali na mercearia, dobrando a esquina pro shopping, saindo pelas telas da casa, que barato, sentando no meu sofá. Graças a deus, todos são donos de si, que beleza. Pro bem de todos, a regra vai confirmando a regra. Omisso, sumiu na sombra da sala, o rosto consumido pela luz de uma tela.
quinta-feira, 14 de março de 2013
A revolution from my bed
As the art and science of manipulation come to be better understood, the dictators of the future will doubtless learn to combine these techniques with the non-stop distractions which, in the West, are now threatening to drown in a sea of irrelevance the rational propaganda essential to the maintenance of individual liberty and the survival of democratic institutions.
Aldous Huxley em “Brave New World Revisited” (1958)

A internet reitera o mundo. É como pornografia: todos procuram apenas aquilo que satisfaz. É um vício pelo entretenimento na forma de humor e às vezes, como se vê nas redes sociais, um vício na forma de indignação. São os dois minutos do ódio para extravasar sua opinião sobre uma injustiça do mundo; uma vez cumprida a cota de “que-absurdo-isso” e “que-absurdo-aquilo”, sossega-se o facho – como faço aqui. Em geral, só se procura o prazer: se o sujeito tem paciência de ler, abre matérias que confirmam o que já pensa para ter mais embasamento pra sentar a lenha naquilo que odeia ou, na melhor das hipóteses, clica na Veja ou a Folha de São Paulo para malhar a nova direita brasileira (pfff!). Nada que o desafie muito ou abra debate para uma crítica que se preze, já que dá cãimbra no cérebro.
Esse é o cenário perfeito para circular um vídeo na internet do político e comunicador George Galloway vociferando contra as opiniões de um estudante de Oxford. O rapaz defendia uma visão contrária às melhorias e democracia do governo de Hugo Chávez na Venezuela. O nome certo do vídeo seria “Como destruir a alteridade em pedacinhos”.
Muitos postaram o vídeo na vã sensação de se sentirem vingados exatamente para concordarem e taxarem de “alienação” qualquer opinião contrária.
Apesar de ser uma tática baixa, é comum desconstruir a imagem do adversário. Vide os cartunistas Laerte sobre a nova ARENA e Latuff sobre pastores evangélicos. Curioso que, neste último, se usa como arma de vilipêndios exatamente aquilo que se defende, o que mostra total desprezo pelas próprias causas, na vaidade de atacar. A mesma prática é repetida até o talo com jornalistas como Eliane Brum, Leonardo Sakamoto e Marília Gabriela ou na verborragia de algumas figuras públicas, como o venezuelano Nicolás Maduro chamando o candidato da oposição Henrique Capriles de “maricón”.
Temos aí o argumento ridículo de que, para se sobrepujar, é necessário desqualificar o antagonista.
Desde as entrelinhas de portais de notícias aos perfis do Facebook, impressiona como as pessoas levam a sério toda boa ação estatal. Como é irresponsável acreditar que tudo só parte da boa vontade de um líder e que só faltava alguém determinado a peitar as elites. Todas essas “melhorias” na educação são tão questionáveis como as suas consequências negativas.
(Estados inconsequentes são como adolescentes/crianças: apesar de terem grande potencial, são cheios de si, são naturalmente dependentes e não produzem. Se dependesse unicamente da vontade de Estados assistencialistas, todo o dinheiro público seria usado para comprar salgadinho e que se dane o dinheiro da perua ou a mensalidade da escola. Em escala maior, fazem exatamente isso e, de novo, com ou sem boas intenções.
De nada vale ter “consciência social”, fazer e acontecer e zás e zás, e defenestrar a economia do país no limbo.)
A esquerda ataca como se, para os liberais, a propriedade estivesse acima da vida e do bem-estar. Mas é óbvio que a imagem de uma pessoa que antes era miserável – e hoje trabalha e tem o que comer – é muito mais emocionante do que um portfolio de empresa ou o anúncio da entrada de capital estrangeiro. Mas nenhum esquerdista pergunta de onde saiu o dinheiro que caiu na mesa do pobre e seus impactos dessa arrecadação, tampouco as consequências sociais positivas com investimento econômico privado sério. O vermelho é uma cor que sabe chamar atenção.
É um cenário dual. Ou é preto ou é branco, não tem meio termo. A discordância é a nova alienação.
Toda besta útil merece um guia genial dos povos.
Recomendo o ceticismo para que se desconfie até daquilo que se ataca – recomendação arriscada essa, pois o vício pela imparcialidade, assim como a unanimidade e a estagnação, sempre traz problemas.
segunda-feira, 11 de março de 2013
Nota de falecimento a Chávez

E o câncer reacionário leva mais um líder da América Latina.
Com a morte do Chávez, a Venezuela vai mudar como a Apple mudou sem o Steve Jobs. Sem uma figura carismática, seria o fim de uma liderança ancorada no personalismo, talvez com outras estratégias para com o público. Por outro lado, em essência, tudo se mantém.
Sei que nem só de pão vive o homem; eu bem que gostaria de gastar todo meu salário em tecnologia, livros, shows, peças de teatro, cursos, instrumentos musicais; não faço porque tenho obrigações. Um Estado cava um buraco quando gasta tudo em cultura e educação. Ainda que na melhor das intenções, um líder que faz isso não pode ser idolatrado justamente.
Sonhava em ouvir a presidente Dilma Rousseff fazendo o discurso que poderia ter sido e que não foi:
"Lamento a morte de um homem e tudo o que significou para seus familiares e admiradores. Por outro lado, a morte do estadista minguará a ditadura do proletariado que já anunciava o fim por si. Chávez deixou filhos, mas não sucessores; notavelmente, o regime adequado a essa escolha e ao seu gênio era uma ditadura tal qual construiu, sem quem tocasse o seu plano adiante, em que apenas ele podia ser líder. Ninguém deve comemorar este momento triste de sua morte, pois é duplamente lamentável. No passado, pelo que ele fez ao povo, e no futuro, pelo enorme trabalho que é necessário para desfazer seus erros."
Aí caí da cama.
sexta-feira, 8 de março de 2013
O verbete democracia
O significado de “democracia” sofreu transformações desde que nasceu na Antiguidade. O direito de exercício democrático na política era restrito a homens que atingiram a maioridade. De lá pra cá o direito de decisão foi dado realmente ao povo, após mobilizações e transformações do tempo. E os ventos anunciam novas mudanças que reviram seu conceito original que conhecemos sobre a decisão da maioria.

Uma torrente globalista paira por aí; é disforme, mas reconhecível por propor soluções para os problemas que ela mesma criou, em prol de se consolidar como essencial aos povos do mundo. Soa megalomania e teoria da conspiração, mas não quero dizer outra coisa que não seja exatamente isso. É conspiração, um pacote de diretrizes que vem de cima, flertando com o pior do capitalismo e do comunismo conforme melhor lhe convém.
Uma das diretrizes desse “pacote” é a reinvenção do termo minoria, que o retira de sua aceção comum e o torna mais sagrado que a maioria democrática. Foi criada a necessidade de tutorar uma minoria, diferentemente das lutas legítimas pelos diretos das mulheres e trabalhadores que obviamente seguiam para um caminho contrário sem que dependessem do Estado ou das estruturas familiares no começo do século XX. A democracia também não é unanimidade, tampouco busca agradar a todos; é o exercício político no qual a representatividade é eleita a partir da decisão de uma maioria. A manobra engendrada para inverter a hierarquia da importância da necessidade de um grupo menor sobrepujando a um menor vai além do que se vê.
Ressalto tudo isso porque, na tarde de ontem, o deputado Pr. Marco Feliciano (PSC-SP) foi escolhido para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Cada século tem o Von Martius que merece.
Primeiramente, não entendi o foco desta comissão. O nome “minorias” está posto ao lado de “humanos” ou “direitos humanos”? De qualquer forma, no primeiro olhar percebi que o nome desta comissão era uma farsa. Daí a reinvenção da roda, colocando o verbete “democracia” em governo de minorias. Está na cara que Câmara dos Deputados segue tendências repetidas pela mídia e pelo povo – a história do ovo e da galinha: quem veio primeiro? E quem discorda? Respeitar essas tendências é louvável; o adequado é atacar a causa da disseminação de um pensamento que até uns anos atrás era inverso ao seu. São as tais diretrizes.
Quanto ao carro-chefe das críticas ao deputado, suas declarações de racismo e homofobia, é triste saber que exista grupos de pessoas que defendam que nascer negro é um azar. Refletindo sobre seu lugar na democracia, se existe um grupo que pensa assim, é natural que entre em conflito ideológico com os demais grupos e, ainda que receba todo tipo de crítica, também é natural que se tenha participação política (com candidatos e cargos), desde que suas afirmações não sejam contrárias às leis de assédio moral, o que não é o caso do deputado Marco Feliciano. Essa democracia permite que do nada surja um Jean Wyllys e um Jair Bolsonaro entre engravatados de renome e possam representar seus respectivos grupos de pressão.
Porém, algum desses representantes podem passar a defender seus valores não dentro dos limites de seus cargos políticos, mas sim enrolados nas bandeiras de suas causas e sobre seus púlpitos e altares. Independentemente da denominação religiosa, valores cristãos na Câmara ou no Senado são totalmente lícitos, mas em hipótese alguma devem ser usados e aplicados a todos cidadãos do país. Esse bloqueio garante que cristãos fundamentalistas não imponham a pena de morte para não-cumprimento de leis bíblicas externas ao Código Penal, como também impede que gayzistas aprovem a recriação do termo “família”, conforme já aconteceu com a "democracia". Ninguém nasceu na República Teocrática Cristã do Brasil.
Nessa batalha, ganha quem consegue reunir mais ovelhinhas. E nas trincheiras das redes sociais e dos comentários de páginas de notícias, o que se faz é só gerar insatisfação e raiva mútua.
quinta-feira, 7 de março de 2013
Como espantar moscas

“They who can give up essential liberty to obtain a little temporary safety, deserve neither liberty nor safety.”
Benjamin Franklin
No mês passado soube de algo inusitado que a princípio achei interessante – e não demorou mais que dois segundos para que eu percebesse do que se tratava. A Lei Federal de Psiquiatria (Nº 10.216, de 2001) possibilita a internação compulsória para dependentes químicos. E o Governo do Estado de São Paulo, em seu site, publicou esclarecimentos de como funcionará a aplicação desta lei em São Paulo.
Facilmente ludibriada, a população aceita esta lei porque, além de crer na melhora da vida dos dependentes, em tese a lei aproximaria o fim do tráfico de entorpecentes e, acima de tudo, traria segurança a todos. É curioso quando assuntos de saúde, cultura e segurança pública se misturam na administração pública e, por conseguinte, na cabeça do pobre diabo.
Em poucas palavras, a lei quer mostrar serviço. O Governo propõe limpar as ruas da maneira mais cruel, reintegrando posse do espaço público como se fosse propriedade privada. Provavelmente resolverá casos de famílias arruinadas pela presença do viciado, que em muito é só retirar o problema. O foco está, sem dúvida, em espantar as moscas, mandar quem incomoda a rua para um lugar longe das vistas da população. Exatamente, como já era realizado com a Operação Centro Legal (nome que é pura engenharia linguística) que buscava reabilitar os viciados da Cracolândia e removê-los da região. Tudo isso sem falar no direito de ir e vir mandado pras cucuias. Se o problema fosse só a solidão, os paulistas não sofrerão sozinhos: trata-se de uma lei federal.
A liberdade de escolha é dispensada em troca da sensação de uma segurança que não existe. Dentre as más novas, uma coisa é certa: ninguém precisa de liberdade plena e verdadeira quando nos são oferecidas possibilidades limitadas que nos fazem “livres” para escolher. É a falsa liberdade que temos para escolher qualquer cor de tonalidade fria; com o tempo, aprendemos que tudo que é tom frio entre branco e preto é chamado de “cor” – e qualquer coisa fora disso é ignorada, seja amarelo, vermelho ou azul. Só não sabemos ao certo quem delimita o arco-íris.
Muitos já estão de pé dando uma salva de palmas ao Governo Federal pela iniciativa. Contudo, ninguém lembra das instituições que estão mais comprometidas com o povo que o próprio Poder Público, este, por sua vez, que só faz publicidade de si. Eu mesmo não conheço nem atuo em algum grupo assim. Uma situação perfeita para ilustrar esta Lei Federal de Psiquiatria foi o anunciado pela Secretaria Municipal de Segurança Urbana de São Paulo no dia 28 de junho do ano passado, que apresentava a proposta de proibir o sopão na cidade para “coibir a distribuição insalubre dos alimentos”. Em linhas gerais, a proposta buscava criar a médio prazo lugares como o Bom Prato (que é estadual) para que só assim as instituições caridosas servissem seus sopões. A Prefeitura de São Paulo, na época sob a gestão de Gilberto Kassab, se retratou afirmando que os sopões não seriam proibidos e que a iniciativa não partiu da prefeitura.
Apesar de estarem aqui misturadas as esferas municipais, estaduais e federais, os interesses já mostraram não ter endereço nem fronteiras quando se trata de gestão pública. No caso do sopão, servir uma mesa com um brasão da prefeitura escrito “Non ducor duco” atrairia todo o mérito da caridade para a gestão e os holofotes eleitoreiros. Não é diferente com a internação compulsória, com uma maca escrito “Brasil: país rico é país sem pobreza”. Proibir a sopa na rua, que era um ato de caridade, gerou indignação; já sobre a internação compulsória não se ouviu um pio, mesmo sendo um crime inconstitucional contra a liberdade individual.
É absurda a crença de que vale a pena internar alguém contra sua própria vontade, pois isto de certa forma pode trazer um bem à sociedade. Simplesmente se julga que, por ser viciado, o sujeito não tem capacidade mental de fazer as escolhas certas para si, como se fosse um doente terminal, aguardando ansiosamente para ser tutorado. Graças a isso, poderiam ser abertos precedentes de todo tipo. É possível imaginar no que isso vai dar: eutanásia e aborto. Um caso perfeito de passa-boi-passa-boiada.
Tudo errado. O fato de um sujeito acabar com a própria vida não significa que acabará com a alheia, tampouco que irá colocá-las em risco. Garantir a liberdade do cidadão é, inclusive, permitir que ele acabe consigo mesmo, ainda que o Estado reprove. Se não houvesse nenhum interesse de promover a imagem do Poder Público, esta proposta seria a saída mais higienista de acabar com o livre-arbítrio de um viciado.
sábado, 2 de março de 2013
Duas folhas da mesma página
Li um texto ótimo no blog de uma amiga e pensei sobre as opiniões contrárias ao Big Brother Brasil.
Dá pra arriscar alguns padrões de quem assiste o programa. Eu poderia dizer que o BBB retoma vontades latentes de algumas pessoas, como 1) dividir um determinado fato com os outros, 2) identificar-se em grupo ao criar um assunto comum, ou 3) a curiosidade pela vivência alheia. Esta última vontade (3) é facilmente simulável com um outro tipo de programa, filme ou livro; enfim, ficção, que se traduz em como alguém se sairia em determinada situação e talvez haja um espelhamento nisso. Na 2), o futebol, gostos e conhecimento comum também cumprem esse papel. E na 1), podia ser um acidente de trânsito, uma notícia.
Em todos esses exemplos, o que acho curioso é que aqueles que avaliam os espectadores do BBB também são avaliados. A rejeição do programa também é número para a Rede Globo, seja essa estatística levada em conta ou não. As pessoas que rejeitam os espectadores do BBB (eu mesmo, por exemplo), bem como rejeitam o próprio programa, costumam atacar essas vontades ao vê-las pelo seu pior ângulo: 1) fofoca, 2) falta de individualidade, 3) bisbilhotice.
Sob outro prisma, é fácil entender esses ataques como rótulos, mas nada mais são do que o outro lado do mesmo evento. É o que diferencia "teimosia" de "força de vontade". Há um costume geral de instaurar dicotomias (frio/quente, direita/esquerda, disposição/preguiça, vida/morte) sem sequer refletir se cada uma delas são realmente opostas, se não existem outras categorias que preenchem o vão entre uma extremidade e outra (morno, apolítico, indisposição, doença).
Qual o ponto disso tudo? Ao dizer algo, você suscita valores que estão de acordo com o que pensa no momento em que diz. Se as palavras, opiniões e posturas forem percebidas enquanto estão em prática (conversa, texto, reações a um filme, etc), podem ser controladas e alteradas. Cansa ignorar os próprios gostos, mas dá. Esse autocontrole pode fazer ouvir Tchakabum no seu quarto e Tchaikovsky num churrasco, pois estas músicas não estão necessariamente endereçadas a determinadas situações. Por mais instantânea que seja sua reação quando exposto a algo fora do seu padrão, do seu gosto, de sua bandeira, pense de novo e tente entender o repertório de ideias daquele que executa aquilo que você a princípio rejeitou.
É o que faz pessoas de posições opostas se respeitarem sem necessariamente aceitarem a prática do outro, para ouvir uma proposta contrária e discordar sem sair faísca.
Relembrando das palavras para atacar o BBB e dos outros significados dessas mesmas palavras, todo esse autocontrole pode ser entendido como "escapismo" (ser bunda-mole) e "poltronaria" (ser covarde, fujão). Prefiro entendê-lo como "tolerância" – que naturalmente me falha.
Por isso sou da turma do deixa-disso.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Comigo não morreu
"Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba."
João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha
Fato
Durante a partida desta semana entre San José e Corinthians pela Copa Bridgestone Libertadores, um garoto de 14 anos no estádio em Oruro, Bolívia, foi atingido por um sinalizador e morreu em seguida.
Essa morte levanta muitas questões sobre segurança e me recorda um fato recente que colocou o Brasil de luto.
Na segunda quinzena de janeiro, todos tivemos a oportunidade de assistir o comportamento da mídia ante tragédias e a necessidade da notícia.
Em tempo: não diminuo o peso da tragédia e nem a dor das famílias. Uso o espaço para colocar em jogo o desespero em achar um culpado, os interesses midiáticos e o poder da aparência, inclusive em respeito à profissão do jornalista. Questiono a posição da mídia como reguladora dos ânimos do público, assim como também questiono se o Brasil merece estar de luto.
Na noite do dia 27/01, dia do incêndio na boate Kiss em Santa Maria (RS), a equipe do Jornal Nacional fez uma ampla cobertura do ocorrido. O mesmo VT foi exibido no dia seguinte, idêntico, diferente do vídeo da véspera apenas pelo enxerto de uma sonora.
Formato
A banca de jornal estava no meu caminho quando vi essas três revistas. Longe de me posicionar quanto à qualidade de cada uma delas, as revistas quebraram o decoro jornalístico e deram um tom apelativo sui generis, tal qual a situação que motivou aquelas matérias.
Revista Veja (Edição Especial)
NUNCA MAIS
Que em memória dos 235 jovens mortos de Santa Maria façamos um Brasil novo, onde ninguém mais seja vítima do descaso, da negligência, da corrupção de valores e da impunidade

Imagem: fundo com destaque centralizado de mulher de chapéu abaixada sobre um caixão
Revista Época (Edição Especial)
TÃO JOVENS
TÃO RÁPIDO
TÃO ABSURDO

Imagem: fundo de fotos 3x4 em P&B das vítimas
Revista Isto É (Reportagem Especial)
TOLERÂNCIA ZERO
O Brasil não pode mais aceitar o estado de insegurança que provoca as grandes tragédias nem o desprezo às leis e à vida.

Imagem: fundo preto com uma foto pequena centralizada de um dos velórios de vítimas.
Imediatamente, como abutres, autoridades políticas se uniram ao evento da tragédia. De qualquer forma, um líder político precisa se pronunciar diante de sinistros dessa magnitude. Contudo, a presidente Dilma Rousseff, por mais sincero que tenha sido seu gesto, chorou na frente das câmeras. Provavelmente, àquela altura as lágrimas poderiam render frutos políticos, mostrando a sensibilidade da futura candidata, no ponto de vista governista; por outro lado, na visão oposicionista, as mesmas lágrimas poderiam mostrar o fracasso particular, devido à mão do Estado (na forma de fiscalização ou controle) não ter evitado o ocorrido.
Mesmo diante dessas condições e de muitas outras posturas daqueles que apareceram naquele momento difícil, as capas daquelas três revistas não escolheram um lado. Pelo menos, não ousaram. O impacto da dor que queriam transmitir, num lampejo de bom senso, não escolhiam um culpado imediato, mas sim um tiro no escuro, genérico e impassível de resposta.
Ao invés de detalhar a sintaxe dos títulos dessas matérias e contrapô-las, aproveito para destacar suas semelhanças.
As capas conseguiram reproduzir fielmente o "paradigma social" da dor, no qual se reconhece no outro alguém semelhante a você; em outras palavras, as revistas se valeram da alteridade. É o mesmo que move algumas pessoas para verem o resultado de um acidente de trânsito. Note que isso não pressupõe compaixão pelo próximo; muitas vezes tal atitude se traduz apenas na curiosidade egoísta que, maliciosamente ou não, parte da ideia de contemplar naquele corpo estirado uma possibilidade de ter sido com você, e o que era alheio se torna algo que lhe é particular.
A maior semelhança entre as capas das revistas é o foco que, com o devido apelo, instiga o leitor a essa curiosidade, também motivada pela pressão social de estar inteirado sobre o assunto. Esse é o principal gatilho de quem vê ou lê jornais.
Fardo
No posto de "porta-voz" da coletividade, a mídia tem o dever institucionalizado de apontar a direção dos ânimos da massa. A indignação, unânime ou não, é distribuída igualmente, para que todos possam compartilhar um mesmo tema. Este papel de uniformização é a função do formador de opinião.
Em ocasiões como esta, é recorrente a mídia eleger imparcialmente os suspeitos a partir das investigações policiais. Ao fazer isso, a opinião pública é orquestrada e normalmente pede a cabeça do culpado na ágora para saciar um desejo efêmero de justiça.
Mas quem é o culpado? Admita: foi fácil nos casos Nardoni, Lindenberg, Von Richthofen, goleiro Bruno, Mizael Bispo etc. Além de render espetáculos para muitas semanas, cada réu era uma figura pontual, um indivíduo específico, com um só rosto, registro de identidade, CPF. E quando o culpado é tão variado como os afetados pela tragédia, amorfo como a negligência, o jeitinho, o descaso? E quando a culpa é de um grupo indistinto que passa rente ao flagrante, consentindo, conivente ao ignorar a causa de determinados males que lhe afligem? E quando o culpado é tão coletivo quanto a opinião pública pregada nesse evangelho de más notícias?
Aí vemos o papelzinho das revistas. Os casos de Santa Maria e Oruro são derrotas já anunciadas. Qualquer julgamento no tribunal só servirá para apaziguar a sede de justiça, pois os mortos não vão desmorrer. Nada será desfeito. Futuras tragédias não serão evitadas. A punição será solução paliativa; se severa, apaziguará mais, mas não anulará a dor em nada.
O empate é o melhor que o martelo e o apito do juiz podem conseguir.
sábado, 9 de fevereiro de 2013
Entrevista em púlpito
Um vídeo roubou a cena e fez do même "Santa Maria" a tragédia mais intensa e mais fugaz das redes sociais. Um programa de entrevistas do SBT fisgou a atenção de muitos e ocupou muito espaço na internet. O tal vídeo conquistou outros vídeos de resposta e piadas de todo tipo.
Marília Gabriela é uma entrevistadora experiente. Trabalha ao mesmo tempo em três canais de televisão e sempre vendeu uma imagem de entrevistadora polêmica - alguém do tipo que encurrala o entrevistado para que ele se mostre em suas respostas, como um interrogatório. Como todo programa de entrevista, acredito que antes de cada filmagem haja um piloto para formular ou praticar perguntas previamente traçadas, o que de maneira alguma invalida a espontaneidade da situação da entrevista.
Esse formato rendeu algumas grandes conversas e supostamente não seria diferente na semana passada, quando foi ao ar a entrevista com o pastor pentecostal Silas Malafaia. Pois bem, não foi uma grande conversa. Notavelmente algumas pessoas se dão melhor com púlpitos do que com bancadas. Vi discussões de bar mais organizadas do que aquele programa.
Tenho algumas considerações sobre a postura de Marília Gabriela, com a sua posição profissional daquele dia, bem como sobre a posição religiosa do pastor. Vamos a elas.
A entrevistadora tocou em frente um debate. Aparentemente desarmada no início, o programa ganhou corpo e polpa antes do primeiro intervalo com a primeira questão polêmica que foi levantada, sobre a dinheirama do pastor. A parede discursiva que impede atitudes arbitrárias foi irrompida. O formato de pregação, já tão sólido na fala comum do pastor, fez com que qualquer declaração fosse um grito agudo, como é de seu costume. O tom de voz e as posições polêmicas do pastor fizeram o jogo perder o rumo, mesmo com intervalos comerciais. Mas o que de fato tirou tudo dos trilhos foi a falta, por parte da entrevistadora, de qualquer conhecimento no campo do entrevistado, argumentos bíblicos, beirando apenas naquilo que é comum a um católico não-praticante. Não é profissional a entrevistadora assumir o papel de destinador ou dar lição de moral. Duas pessoas se sentaram para que apenas uma fosse exposta; as duas se expuseram e da pior forma possível, pois o discurso deitou fora seus traços expositivos para assumir os argumentativos.
Quanto ao pastor, um pequeno flashback. Caí na real do papel da atividade religiosa e dinheiro quando fui atualizar meu currículo há uns quatro anos. Dentre as coisas que são de César, estão as peneiras nas salas de Recursos Humanos. É possível dedicar grande parte do dia, semana ou mês em uma atividade religiosa que desenvolva sua criatividade, dê canseira, prazer, resultados até mais sólidos do que carregando documentos, enrolando brigadeiros, teclando no escritório ou fazendo faxina fora. Essa atividade religiosa não tem a mesma relação de trabalho que um emprego comum, como um consultório ou escritório, já que, no caso cristão, a postura assumida é de doação, e a atividade, secularmente, é uma prestação de serviço e não pode ser incluída em currículo como experiência de grupo, recomendações, oratória ou jogo de cintura. Apesar disso, minha posição é que sim, alguma renda é necessária quando você dedica metade ou mais do seu tempo em seu local de fé ou "perímetro" de atuação - e quando digo "tempo", falo de 24/7, não das horinhas que sobraram que fazem você dar um pulo na igreja. Contudo, em consonância com a sua ideologia de prosperidade, o patrimônio que o pastor levantou superou em muito qualquer limite mensurável de abnegação. Isso já o colocaria em cheque.
Quanto a todo o resto, que é justamente o que mais promoveu o status quo laicista das redes sociais, recomendo que "cristãos não-praticantes" de plantão leiam a Bíblia. Informem-se e, de preferência, sem revisionismos. Toda a postura de Silas Malafaia em relação a união homoafetiva não é novidade; o que há de novo é a interpretação feita com o livro, que cada vez mais é visto como um compêndio de leis atrasadas que, como disse Marília Gabriela, são leis "de dois mil anos que nunca foram revistas". Não suporto essa pretensão humana em querer revisar Deus. É uma vontade infinda de atualizar, de fazer do óbvio obsoleto e criar algo novo que abrace a todos.
A engenharia linguística comeu solta: evito "homossexualidade" e prefiro "homossexualismo" não por motivos médicos, dos quais duvido muito, mas sim pelo gay ser uma bandeira, como o feminismo. O bom-mocismo impede que sejam colocadas as palavras "bandido" e "gay" na mesma sentença, pois implicitamente (só se for com Freud, pois o Chomsky foi embora e mandou lembranças) você dá a entender que há uma comparação entre os dois, ou que estão colocados em pé de igualdade. A quem não entendeu isso, sugiro ler uma gramática, sessão "Sintaxe"; tenha carinho especial pelo capítulo das orações coordenadas.
Tomada essa proporção nas redes sociais, sentei e play. Até o último pelo do corpo eu me arrependi.
sábado, 5 de janeiro de 2013
quinta-feira, 3 de janeiro de 2013
Uns papelotes, uns panfletos
A política é uma droga ilícita.
Cria dependência quando lida, pensada, escrita, militada. Causa repulsa em quem não as usa e as julga conhecer.
O consumo gera insatisfação e desconforto, principalmente após misturar realidade com utopia. Bastam alguns gramas e está rompida a fronteira entre o que é perceptível a todos e a sua mais recente versão de "óbvio".
Faz viver a ansiedade de dizer algo no palanque. Às vezes é no anonimato, atrás do poste cheirando cola com a cara cheia de pixels. Sempre há espaço para cometer amadorismos. Sempre. Na sua megalomania, a cegueira de escolher um lado te impede de notar que você já alcançou o extremo oposto daquilo que acredita, e passa a fazer exatamente aquilo que antes combatia.
Dá algum trabalho conseguir política no começo; depois que alguns amigos te indicam onde arranjar uns papelotes, uns panfletos, começa a ficar fácil. Sempre tem aquele livrinho de capa dura, um livreiro, um sebo, a nova edição aclamada pela crítica e execrada pela academia. Um documentário, aquele buffet com fundos da ONG ou do partido, é o pagodão na laje do fulano. Basta saber em que beco entrar e qual aviãozinho tem a fala mais mole pra conseguir mais com o dono da boca. Com a prática, você sabe quais colunistas frequentar, quais evitar e até quais blogs são dignos de atenção para conhecer as bestas úteis contrárias a sua ideologia.
Há as que te fazem relaxar (consoantes com o paradigma social) e as que te deixam freneticamente acelerado (oposição). Não importa qual, você tem que saber o próprio limite: depois de muitas carreiras cheiradas e pontas queimadas, você descola do real, perde família, emprego, religião, ainda que ideologicamente esses três pilares não te sejam proibidos. A maioria cai nessa. Uns poucos levam a prática a sério, pois percebem que ser usuário é o problema. Estes se tornam traficantes, com algum grande veículo de mídia para se expressar (ou expressar os outros) ou algum cargo público (tudo tem seu preço). Dentre eles, há uns bocas de ouro, os barões da coca, que são os arrivistas do poder travestidos de baluartes da democracia – são presidentes, senadores, ministros; tem quem diga que não se trata de política, pois ali a droga é tão lícita quanto o cigarro e a cachaça. Os mais perigosos são os produtores, acima dos feitores das plantações e dos carregadores; são os que criam ideologia escondidos atrás da mobília de seus escritórios, refinam a pasta da droga em almoxarifados, enriquecem urânio na gaveta, em formato A4, C4 ou TXT.
É gostoso curtir sozinho, mas alguns só vão para as festas após consumir um pouco de política. Desde os chazinhos de madames regados a bons costumes até as reuniões secretas de porão. Tudo é quimera, aspirantes a cracolândia com bandeiras e cadastros.
Criaram um debate sobre a legalização da política.
Dá ressaca, bad trip pesada. Quem para, sofre as consequências; vive a ambiguidade do arrependimento por já ter usado e a necessidade de ter mais. Há quem se arrependa do que escreveu, do que ainda pensa e do que já pensou. Os destemidos nunca se arrependem, pois jamais se permitem esses intervalos entre uma pílula ou outra.
O pior de tudo: há propaganda do governo te alertando sobre os males do seu uso.