segunda-feira, 22 de abril de 2013

Tropiquei

a vela bateu e respingou na areia
singrou o sertão de veias abertas
a caldeira ficou no caminho
caiu a chaminé e do chão não saiu mais
fazia sol
e pra sempre
minha pele mudou de cor no suor da tua
os tons molhados escorregavam à força
era o facão sem fio fazendo picada
descalço agora
perdi o fio da meada
abrindo, fugindo, indo fundo
mundo afora, adentro
fiz queimar rio e o sol na moleira
brindamos vinho
toda prosa, minha língua hoje é transa
sentiu o doce e o ranço de caium e mel
fiz um sinal e ali tropiquei

terça-feira, 16 de abril de 2013

My ass über alles

Vamos chover no molhado, já que pra muitos talvez não esteja molhado o bastante: o descontentamento com Marco Feliciano é o resultado do ódio pelo outro.

Novamente, dessa vez por todas. Como todos os outros deputados, ele foi eleito legitimamente. Em tese, não necessita de recontagem de votos. Aquele que votou nele obviamente acreditava que Feliciano pudesse ser um bom deputado representando os valores de quem votou etc, assim como quem votou no Tiririca acreditava que em Brasília faltava palhaçada.

Achou ruim? Então você é contra a democracia. Você quer golpe. Derrubar alguém de seu cargo é silenciar o grupo de pressão que ele representa, ou seja, os evangélicos – e nisso todos cristãos entram na roda. Se ele toma alguma medida inconstitucional ou faz besteira, ele pode ser "demitido por justa causa" (lembrando que ocupa um cargo público), parecido com o que mereceu Collor com o quase-impeachment de 1992.

É mais simples de se entender do que eleição de reitor da USP. Aliás, se você é aluno de lá e não quer outro reitor como o João Grandino Rodas, esse problema pode ser resolvido se o governador eleito (que escolhe o reitor dentro de uma lista de três candidatos selecionados previamente pelo Conselho Universitário) for petista: aí até sindicalista pode ser o novo reitor, se você quiser. É só você eleger um petista. Pronto, você já está representado.

Agora, se seu grupo de pressão é pequeno e não consegue se sobrepor politicamente, só resta puxar o tapete dos demais. Reinvente o conceito de "minoria" e se ponha nesse lugar. Se jogue no mar e grite "socorro", cave falta, grite "pênalti". Pode espernear, ganhar as redes sociais, as ruas. Corra atrás do osso.

Como muitos, discordo desse deputado e por mim ele não estaria lá. Sequer essa comissão teria esse nome: sei que "Direitos Humanos" é hiperônimo de "Direito de Minorias", e compôr uma minoria não te exclui de ser um humano. Obviamente, para quem o quer fora a qualquer custo, a intolerância e outras questões ideológicas são atentados muito maiores à política do que corrupção ou formação de quadrilha. Opinião da intolerância é tão maior que a corrupção que se deixassem teria fogueira, forca ou guilhotina. Todos babando ensandecidos com os olhos veiúdos pra urrar a morte do "intolerante" em rede nacional.

Mas vamos falar de coisa boa

A multidão de católicos não-praticantes caiu no papo: fez questão de esquecer tudo da catequese para perpetuar a nova releitura laica da cristandade.

O deputado Marco Feliciano é pastor da Assembleia de Deus. A sua fé se define por aquilo que acredita, por tudo que não aceita mas tolera e também se define por aquilo que condena.

Se esse pastor achasse que comer brócolis leva pro inferno, a denominação dele ensinasse assim e os fiéis seguissem, é óbvio que rotulariam todos que gostam dessa verdura de filho do capiroto, mesmo que fosse um ex-beatle¹. E vai achar razões para acreditar nisso, à revelia do certo ou do errado.

A questão não é ele condenar católicos. Outras denominações religiosas (e políticas) também condenam outros por muito menos e não são fundamentalistas, panfletárias ou proselitistas. Os próprios católicos, por exemplo, como também petistas e tucanos. O ponto de atenção é que se use um vídeo dele em pregação, ele "na qualidade de pastor"², para delimitar uma postura dele como deputado e promover o demérito de sua integridade.

Como político, Marco Feliciano já constrói provas suficientes contra si mesmo e não precisa desse tipo de ataque. Arrisco-me a dizer que ele talvez o faça até como cristão, mas até que não atinja a esfera pública, sua corrupção como pastor é um problema a ser resolvido em sua comunidade. Foi assim com Jesus entre os judeus.

Feliciano afirmou que antes de ser eleito, a CDHM era possuída por Satanás e coisas do tipo. Bem sabe ele que isso não se diz no espaço em que está, ainda que tenha direito de exercício de sua fé. Ali ele cumpre um papel público e responde a um Estado laico.

¹ Assista ao vídeo em que Pr. Marco Feliciano, em pregação, justifica o assassinato de John Lennon como gesto da ira de Deus.

² Aqui me refiro às palavras do Pr. Silas Malafaia em um texto que publicou recentemente na Folha Online.

sábado, 13 de abril de 2013

Rubro arco-íris

Recentemente, a cantora Daniela Mercury assumiu seu relacionamento gay. Todas as fotos que circulam pela web são lindíssimas e provam em grande estilo que um relacionamento homoafetivo pode e deve ser tão feliz quanto o de um homem e uma mulher.

No íntimo, sei que a completude de um casal depende muito da criação de filhos. Por questões pessoais minhas – que seriam facilmente derrubadas pela facilidade de adoção de crianças – entendo o relacionamento gay como uma interação incompleta, além dos habituais valores cristãos que tenho, os mesmos valores que me garantem a tolerância, amizade e bom trato com pessoas que caminham para um ponto oposto ao meu.

Pouco antes da exposição midiática da Daniela Mercury, outra cantora, Joelma da Banda Calypso, expôs seus princípios sobre um filho seu e um possível ato deste sair do armário. Dificilmente ela encararia com a mesma naturalidade que se encara por aí, entre as pessoas que defendem com unhas e dentes as causas gay e de demais minorias. Ela é evangélica.

Deve-se considerar que Joelma responde a valores cristãos, e com isso também segue uma cartilha que carrega um calvário inteiro dessa fé, que atualmente faz frente a Calígulas, Cláudios e Neros dispostos a incendiarem a própria casa e causa (como militantes que criticam padres homossexuais ao invés de também inserí-los no portfolio de minorias).

Defendo as duas. E explico o porquê.

A Joelma, além de seu direito de fé resguardado pela lei, tem direito de liberdade de pensar o que é melhor para seus filhos desde que não infrinja qualquer outra prescrição também legal, como o tão mencionado Estatuto da Criança e do Adolescente, independentemente do que se acha ou se prega por aí. Se nesse afã por privilégios de minorias ela quiser que as filhas passem a usar burca por algum valor de conservação de costumes ou por alguma interpretação bíblica tradicional que liga o profeta Maomé a Jesus, tudo bem, uma vez que as filhas estejam sobre a sua tutela e ela, melhor que o Estado, as conhece e pode julgar o que lhes é mais adequado. Como meter um sarrafo, por exemplo.

Ela é uma figura pública e sua declaração tem um impacto que extrapola a posição política, religiosa ou familiar. Por ser pop, sua opinião tem forte influência sobre seu público ou sobre quem se identifica com sua origem social. Isso em si não é o problema, pois acontece na classe média (com artistas de classe média) etc. A pedra no sapato está na distância entre ser evangélico conservador e ter origem simples, pobre, gostar de forró paraense. Pessoas que normalmente não concordariam com a Joelma, e apesar disso são seus fãs, estariam inclinados a assumir o seu lado.

A inversa, igualmente verdadeira, não é um problema frente ao novo paradigma gayzista da sociedade. Daniela Mercury teve um "ato de coragem" e não "um ato irresponsável de ser uma artista com muitos fãs que não pensou que estes podem seguir cegamente sua posição." Não há segredo em perceber o que há por trás desse gesto. Tudo é em vão, desde as tentativas banais da mídia conservadora em diminuir a atitude de Daniela, até a súbita legião de fãs que ela conquistou só por assumir uma bandeira gay. Respeito e apoio a decisão da cantora e fico muito feliz em saber que, apesar da pressão "religiosa" em defender leis exclusivistas, homossexuais têm seus direitos civis (repito, civis) garantidos. O homossexualismo deve sim lutar pelo direito de casamento civil. Apenas não concordo com o revanchismo que essa luta assume quando se fincam bandeiras nessa causa, pois a garantia de direitos aos homossexuais vira mero instrumento de revolução – fato que muitos gays não percebem, para a tristeza geral.

E por que defendo a Daniela? Simples. Por ser cristão, entendo que não há melhor testemunho do que a vida da pessoa. Não conheço sua rotina, sua idoneidade; vim de uma escola que prega que uma mão não mostra à outra o que faz, fato contrário ao apelo midiático da cantora; mas ainda assim reconheço em seu gesto algo muito sincero. Não faço dela melhor nem pior por isso, a contrário do que vejo por aí, com pessoas que se agarram nela só por ser gay. Defendo a Daniela porque sua vida correspondeu ao que acredita. Pensando nisso, não creio que sinceridade valha mais que valores sóbrios, mas percebo em seu gesto a prova transparente que pode fazer libertários "conservadores" como eu (perdão pelo paradoxo) repensarem toda a questão.

E já que ela usou um relacionamento pessoal como panfleto de mass media, eu ficaria muito feliz que seu gesto também gerasse reflexão nas bandeiras gayzistas, que repensassem seus valores revolucionários; que passeata esquerdista, satanização de pastores ou credos, intervenção na vida dos outros quanto ao dízimo, enaltecimento de impostos para políticas públicas muito superiores à ajuda religiosa, revisionismos bíblicos e afins, tudo fosse finalmente encarado como futilidades que só fazem água. Por que privilegiar uma cor entre tantas que compõem a bandeira gay?

Fora disso, todo cristão que acha que tem de levantar piquete não passa de Judas. Evangelho não precisa de defesa. Abra a caixa registradora, pegue suas trinta moedas e vaze daqui.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Nota de falecimento a Thatcher

No aniversário de quatro anos do tem que falar, dez anos do antigo "O Livro dos Meus Dias" e um mês depois da morte de um déspota, sonhei com a presidente Dilma Rousseff se pronunciando sobre a morte de hoje:

"Hoje é um dia de luto para todo o país. A primeira mulher que me inspirou na política, que mostrou ser possível uma figura feminina íntegra subir tantos degraus com braço forte. Foi Margaret Thatcher que me provou que luta e revolução não são necessariamente pegar em armas nem propagar falsas culturas, tampouco incitar ódio entre classes. Margaret Thatcher livrou seu país do mesmo pesadelo que nós, brasileiros, estaríamos prestes a viver a partir de 1964; a diferença foi que o Brasil nunca contou com alguém à altura de Thatcher para impedir o socialismo, e assim cometemos o nosso maior erro contra a democracia e a liberdade. Para atravessar imune a cortina de ferro, apenas aquela dama tinha o mesmo peso, fio e força de seu obstáculo.

Os grandes se foram. Após Chávez, vai Thatcher. Só consigo ver a perda de hoje como o preço por um dia desejarmos o fim daquele homem. Essa troca para expurgar os males desse século saiu muito cara, uma vez que seu grande trabalho foi realizado no século passado. Descanse, Thatcher."

domingo, 7 de abril de 2013

Um sorriso nos lábios

"E aliás, cá pra nós, até o mais desandado dá um tempo na função, quando percebe que é amado.

E as pessoas se olham e não se falam, se esbarram na rua e se maltratam. Usam a desculpa de que nem Cristo agradou. Falô! Cê vai querer mesmo se comparar com o Senhor?"

Criolo em "Ainda Há Tempo"

É domingo e eu estava no metrô muito cheio. O transporte público é um imenso laboratório, pois muita gente fica mais próxima fisicamente de um desconhecido do que dos filhos, da esposa, do marido. Enfim, num momento em que as portas foram seguradas, a maquinista deu seu aviso de jeito engraçado, pausado e bem silabado, de forma que o trem inteiro riu e eu também, até porque foi uma situação inesperada. E se fosse segunda-feira?

O riso salva do mau humor. Penso que as paixões são reguladas como um copo d'água usado para limpar o pincel: cada cor flutuando é uma sensação a qual se foi exposta e são anuladas quando decantam ao fundo. A crosta que se forma embaixo é a ganga do garimpo de experiências que vivemos, é a soma de decepções e sucessos que nos tornam sonhadores, ranzinzas, ressabiados, valentes etc. Não é nenhuma novidade científica, não estou inventando a roda com isso: a bile negra, o spleen e os hoje tão famosos "neurotransmissores" teorizam sobre o tema.

O riso no metrô na segunda-feira até poderia instigar relações mais harmônicas entre as pessoas. Faz de você mais arlecchino, clown, pierrot, mais colombina. Mas ainda que resolva a questão do "pratique a cortesia", o riso momentâneo nos salvaria dos problemas que nos fazem mal humorados, tristes, irritados na rotina? Uma conta, um conserto ou o próprio transporte público?

É a cultura do não-atrito, que despreza variáveis e arredonda pra cima os ânimos coletivos. Gravidade é dez, pi é três e não há moeda de um centavo no troco. Essa cultura não necessariamente acarreta em sorrisos falsos ou sinceros, apenas amansa todos ao mesmo tempo, para que eu e você nos sintamos mais "civilizados". A classe média não gosta de fazer barraco, mas enche o peito no anonimato do telefone para se esguelar no SAC de algum serviço mal feito.

Essa mansidão é vasta, é alarmante e está no ambiente corporativo, acadêmico, religioso etc. É um comportamento que está na rua e já entrou na sua casa. Convence todos de que bater de frente não compensa, é se arriscar por pouco, de que isso não é uma atitude cristã. É a geração dos bundões que sorriem quando convém e maltratam quando dá na tampa e ninguém está vendo; que são cavaleiros valorosos online que não sustentam a mesma força num papo de bar; que se dizem tolerantes segurando risada numa piada preconceituosa, acreditando que livram a sociedade dos estereótipos, que suas risadas numa piadinha maldosa reforça esse preconceito; gente que gosta de sintetizar toda sua racionalidade com uma tirinha, um même que alguém aí fez. Todos de parabéns.

Por um lado, o riso não é a cura de tudo: sorrir e se calar frente a qualquer adversidade é dissimulação, é aprender a ser falso e acumular ódio para espalhar aos outros ou arquitetar a revanche. Por outro, rosnar para todo e qualquer movimento brusco é ser estúpido. Partir pro braço é ter preguiça de articular argumento. Ser crítico e exigente não pressupõe ser mal-educado.

O saldo que faço do riso é que ele ajuda a derrubar a primeira barreira entre as pessoas. Só não vire palhaço.