segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Apuração parcial

Na manhã de domingo de segundo turno, vi a cena inicial de 'Gangues de Nova Iorque', com a batalha de dois grupos em 1846. Muito parecido com o Facebook ultimamente. Veio na minha mente o 'Cidade de Deus', e lembrei do Zé Pequeno dando uma arma pro Filé Com Fritas e dizendo para os moleques da Caixa Baixa: "no pé ou na mão?". Não havia saída.

O resultado era sabido antes dos dois turnos: fosse quem fosse, o Brasil perderia. E perdeu. Ao invés de um presidente, apenas escolheríamos em que colo a bomba iria explodir. E foi decidido que será no colo de quem a acendeu. Uma crise certa está aí e muitos preocupados com a posição de candidato x ou y sobre casamento gay, aborto ou liberação de drogas. É como haver um acidente e discutirmos a cor da ambulância que está para chegar.

Minha sede por eleições era proporcialmente oposta a minha sede por Copa do Mundo: esta acabou cedo; aquela, por sua vez, foi tarde.

Dentre os eleitores tucanos, sinto uma gota de ilusão (por uma possível mudança futura) e uma gota de anarquismo (impeachment e desgovernos). Dentre os eleitores dilmistas, sinto uma manutenção de políticas assistencialistas que une as esquerdas brasileiras. Apesar dos seus votos inexpressivos, o que pregou a Luciana Genro foi seguido à risca até por quem não era seu eleitor: voto útil só no segundo turno, anunciando a união e a acirrada vitória de Dilma. Pelo que vimos, o fato da campanha de João Santana bater na imagem de Marina no primeiro turno não tornou unânime a transferência de seus votos para Aécio, apesar de seu apoio ao tucano.

Um detalhe interessante é quanto a auto-imagem dos partidos. A esquerda, apesar de bem articulada no país, se ilude com a "onda vermelha". Não, nem todos os eleitores de Dilma são militantes, apesar da festa ter sido grande. Dos eleitores da presidente reeleita, apenas uma pequena parcela se dedica ou se arrisca na militância. São como sacerdotes; o restante são fiéis, aqueles que acreditaram no medo da volta do Dragão da Inflação. Parece óbvio, mas para a militância online existe essa ilusão de que a esquerda engrossa suas linhas num volume quase unânime entre seus 51,64%.

Por outro lado, Aécio Neves agregou a mudança à sua figura, mesmo propondo muito mais do mesmo. A divulgação das denúncias de corrupção aos quarenta e cinco do segundo tempo apenas jogou lenha na fogueira, se igualando à campanha petista na sujeira. Apenas a rivalidade, fruto de choque da tradição que afeiçoa seu PSDB a uma "direita brasileira", o separava de sua oponente. Nos debates, todas as políticas assistencialistas estavam sob a promessa de serem mantidas, o que não desagradou, em nenhuma medida, os conservadores, o que coloca em cheque o que de fato seus eleitores estavam dispostos a engolir para eleger seu candidato. Por sua vez, para seus eleitores, Dilma aprimoraria o que se tem feito e impediria, como alegou, um possível retrocesso à Era FHC – ignorando o próprio anacronismo de sua análise, deixando de lado o período em que o Plano Real patinava para se estabelecer como moeda forte. Era um "eu tenho medo" vira-casaca e sem Regina Duarte.

No cenário nacional, o então senador Aécio Neves encarnou toda a oposição, tarefa digna de Rubinho Barrichello pós-Senna. Incertos de um programa sólido, esses 48,36% sabiam muito bem o que NÃO queriam. E só. E isso se transparecia no gritante ódio ao PT, confirmando a tal polarização que Marina Silva tanto suscitava.

Apesar das sujeiras de campanha e de seu resultado, o segundo turno foi uma aula de alianças, de estratégia de voto e de engajamento popular. Reparem que, provavelmente para não se expôr e se arriscar, Dilma não propôs um plano de governo, enquanto Aécio apenas o propôs em aproximação das demandas exigidas por Marina. Para entender o porquê de Aécio Neves, assim como todos os tucanos, ser de esquerda, recomendo a leitura de sua proposta de governo. Se mesmo assim há dúvidas sobre o caráter esquerdista da social-democracia tucana, leia sobre a carta de compromisso de Aécio e seu desdobramento quase silencioso, no exemplo do G1. O tucanato, que sempre se julga conservador, se nega a ver isso.

Comparando as eleições (1989-2014), a proporção de abstenções, brancos e nulos estão estáveis. Antes de chamá-los de cúmplices ou irresponsáveis, reflita sobre o atual modelo de democracia, e não sobre a motivação da ausência alheia. O que esses números nos dizem? Será que as pessoas não estão nem aí ou mal-informadas? Ou estão insatisfeitas com as opções? E com a obrigatoriedade do voto?

A frustração e o triunfo mostram a pior versão de nós mesmos. As reações absurdas nas redes sociais, as comemorações e lamentações do resultado não são diferentes do que temos visto ao longo do ano. A escolha de um candidato cegou os eleitores para os próprios defeitos, se autobeatificando e demonizando o oponente, muito semelhante a torcidas organizadas. Questiono severamente se isso é a tal maturidade pregada por jornalistas nos portais de notícias, de que o brasileiro foi às urnas mais consciente depois das manifestações de 2013. Duvido. Os equívocos devido à proteção da imagem de seu candidato são naturais. Contudo, o que vimos nesses tempos foi, no mínimo, irracional. Após a apuração dos votos, a tal xenofobia e separatismo norte/sul são apenas a cereja do bolo. Entre as postagens publicadas, não vi nada disso. Ainda se visse, não seria diferente da sujeira praticada por todos os lados nesses últimos meses, dentro e fora da internet.

Sobre isso, enxergo hipocrisia e a resumo numa frase: Acho graça em quem acredita que o ódio de classe é moralmente superior ao ódio de raça.

Estou convencido de que o fato de não ser representado por nenhum candidato me proporcionou uma posição privilegiada e ingrata para observar esses tempos. Mesmo não entendendo a política, não defender ninguém já elucida muito do que está ocorrendo. É como estar sóbrio numa Oktoberfest.

Reitero: manter o silêncio não é "estar em cima do muro" ou "favorecer o outro lado". Eu tenho o meu lado, e não é o de nenhum de vocês. Nada contra.

Nesse ponto, me pergunto: e como eu, liberal e libertário, seria representado? O ataque legítimo de William Bonner ao Everaldo mostra o quanto é impossível se articular nesse cenário político. Everaldo era mero engodo: apoiava a base governista até o início de 2014 e passou a falar sobre estado mínimo sem nunca ter lido uma linha sequer de Mises ou Hayek. A entrevista do pastor no Jornal Nacional exibiu a dificuldade de propor algo diferente, como as saídas liberais, sem abrir concessões. O que enxergo é que qualquer papo de "estado mínimo" ou "livre mercado" é o extremo oposto do "economia planificada" e "fim da burguesia", e não menos impossíveis. É fantasia.

A esquerda – não a de bandeiras, agitadores, blogueiros e centrais sindicais – está incrustada e latente no caráter do brasileiro, o que incluo os conservadores arrogantes que pedem mais estado. Não há crise de representatividade, pois ela é bem atendida, mas sim uma democracia delegativa que precisa colocar a chupeta na boca do povo. No meio a isso, minha falta de fé certamente não é pelos mesmos motivos "coxinhas" em que facilmente me enquadrariam. Meus pêsames seriam sentidos com qualquer candidato eleito.

Sou fatalista. Não nutro qualquer esperança para o país no que se refere a uma real prosperidade que não seja reativa. O país tem sede de populismo, de políticas imediatistas, e a situação e a oposição oferecem isso. A direita que defendo não vê políticas sociais como um fim imediato, mas sim como uma consequência de uma severa responsabilidade econômica, que a liberta desse capitalismo de estado e de sua onipresença. E, por ora, não vejo um horizonte.

sábado, 4 de outubro de 2014

Dessaber

Paradigma político brasileiro > Ensaio Sobre A Cegueira > The Walking Dead

Do mais traiçoeiro e real ao mais simplório e inofensivo, eis a gradação de cenários, em que vemos os perigos mais sutis nas outras pessoas.

Por que isso? Veja os pontos. Há uma tragédia em "The Walking Dead", os zumbis, que não pensam e só atacam. Os problemas reais são os sobreviventes, que se realocaram de acordo com o novo cenário, em que é preciso sobreviver e disputar recursos limitados. Frente a isso, os zumbis são apenas um limitador, um risco visível e até caricato.

Em "Ensaio Sobre A Cegueira", os problemas dos sobreviventes se repetem, exceto pelo fato de não haver uma distração como os zumbis. De repente, todos estão cegos e só os grupos pequenos sobrevivem. Há de se confiar na voz e na palavra dos outros, ou desconfiar para permanecer vivo. Mocinhos do dia-a-dia viram vilões, os mau-encarados ficam ainda mais hedonistas, os fracos perecem etc.

Comparada às posições políticas no Brasil, a cegueira do livro do Saramago é muito ingênua. Ninguém é vilão de fato, tampouco herói. Todos juntos compartilhamos gostos, histórias, gargalhadas, mas também uma discordância política diametralmente oposta. E também temos que sobreviver, lado a lado ou não.

Na prática, tudo funciona como um trem lotado. Apertados como uma lata de sardinhas sobre trilhos, os passageiros sofrem de um problema comum: falta de condições mínimas para a viagem digna e segura, provocadas por uma má gestão do governo ou concessões malfeitas para o transporte público. A reação? Descontam uns nos outros, cada um com a convicção que lhe convém. Disputam espaço e partilham faíscas. O atrito dos trilhos. No final, todos são cidadãos, eleitores, e estão indo fazer a mesma coisa: trabalhar.

Esse paradigma é o momento em que pilares como "amizade" e "família" são colocados em cheque. Tudo meio dúbio, confuso... Para que possamos conviver, tocamos em frente esse fair play, fingimos esse deixa-disso, pois qualquer exposição de opinião, minha ou sua, servem de munição para essa guerra de ideias. O convívio de opostos é necessário, mas o ponto em que chegamos não é nada sadio.

Reconheço que admiro a convicção política dos meus pares. Ficaria feliz em saber que posso escolher entre tudo que está aí, uma vez que todos fazem parte do mesmo espectro político do qual acredito. Mas não é meu caso. Realmente, deve ser muito bom acreditar em propostas, mesmo ignorando o fracasso sucessivo dessas tentativas, se agarrando ao carisma de certas personalidades e torcendo por uma causa tal qual o time do coração.

Admito: me enganei e fui ingênuo achando que tudo isso acabaria junto com as Eleições de 2014. Acreditei que, depois das eleições, as amizades sobreviveriam. Sobrevivem sim, mas as bandeiras empunhadas tornam as relações muito voláteis. Amanhã pode ser qualquer coisa. Vilão e mocinho, certo e errado, igualdade e liberdade; categorias obsoletas.

Ou desisti de conviver com a verdade dos outros ou acordei mais pessimista que o normal. Talvez seja a falta de representatividade do que penso, que faz eu ficar mais azedo e me trancar nessas linhas acima.

A chave? Não basta não se importar com política, até porque é impossível depois de tudo que li. Mas a pílula azul do Morpheus iria bem agora.

É necessário deixar de saber.