quinta-feira, 7 de março de 2013

Como espantar moscas

“They who can give up essential liberty to obtain a little temporary safety, deserve neither liberty nor safety.”

Benjamin Franklin

No mês passado soube de algo inusitado que a princípio achei interessante – e não demorou mais que dois segundos para que eu percebesse do que se tratava. A Lei Federal de Psiquiatria (Nº 10.216, de 2001) possibilita a internação compulsória para dependentes químicos. E o Governo do Estado de São Paulo, em seu site, publicou esclarecimentos de como funcionará a aplicação desta lei em São Paulo.

Facilmente ludibriada, a população aceita esta lei porque, além de crer na melhora da vida dos dependentes, em tese a lei aproximaria o fim do tráfico de entorpecentes e, acima de tudo, traria segurança a todos. É curioso quando assuntos de saúde, cultura e segurança pública se misturam na administração pública e, por conseguinte, na cabeça do pobre diabo.

Em poucas palavras, a lei quer mostrar serviço. O Governo propõe limpar as ruas da maneira mais cruel, reintegrando posse do espaço público como se fosse propriedade privada. Provavelmente resolverá casos de famílias arruinadas pela presença do viciado, que em muito é só retirar o problema. O foco está, sem dúvida, em espantar as moscas, mandar quem incomoda a rua para um lugar longe das vistas da população. Exatamente, como já era realizado com a Operação Centro Legal (nome que é pura engenharia linguística) que buscava reabilitar os viciados da Cracolândia e removê-los da região. Tudo isso sem falar no direito de ir e vir mandado pras cucuias. Se o problema fosse só a solidão, os paulistas não sofrerão sozinhos: trata-se de uma lei federal.

A liberdade de escolha é dispensada em troca da sensação de uma segurança que não existe. Dentre as más novas, uma coisa é certa: ninguém precisa de liberdade plena e verdadeira quando nos são oferecidas possibilidades limitadas que nos fazem “livres” para escolher. É a falsa liberdade que temos para escolher qualquer cor de tonalidade fria; com o tempo, aprendemos que tudo que é tom frio entre branco e preto é chamado de “cor” – e qualquer coisa fora disso é ignorada, seja amarelo, vermelho ou azul. Só não sabemos ao certo quem delimita o arco-íris.

Muitos já estão de pé dando uma salva de palmas ao Governo Federal pela iniciativa. Contudo, ninguém lembra das instituições que estão mais comprometidas com o povo que o próprio Poder Público, este, por sua vez, que só faz publicidade de si. Eu mesmo não conheço nem atuo em algum grupo assim. Uma situação perfeita para ilustrar esta Lei Federal de Psiquiatria foi o anunciado pela Secretaria Municipal de Segurança Urbana de São Paulo no dia 28 de junho do ano passado, que apresentava a proposta de proibir o sopão na cidade para “coibir a distribuição insalubre dos alimentos”. Em linhas gerais, a proposta buscava criar a médio prazo lugares como o Bom Prato (que é estadual) para que só assim as instituições caridosas servissem seus sopões. A Prefeitura de São Paulo, na época sob a gestão de Gilberto Kassab, se retratou afirmando que os sopões não seriam proibidos e que a iniciativa não partiu da prefeitura.

Apesar de estarem aqui misturadas as esferas municipais, estaduais e federais, os interesses já mostraram não ter endereço nem fronteiras quando se trata de gestão pública. No caso do sopão, servir uma mesa com um brasão da prefeitura escrito “Non ducor duco” atrairia todo o mérito da caridade para a gestão e os holofotes eleitoreiros. Não é diferente com a internação compulsória, com uma maca escrito “Brasil: país rico é país sem pobreza”. Proibir a sopa na rua, que era um ato de caridade, gerou indignação; já sobre a internação compulsória não se ouviu um pio, mesmo sendo um crime inconstitucional contra a liberdade individual.

É absurda a crença de que vale a pena internar alguém contra sua própria vontade, pois isto de certa forma pode trazer um bem à sociedade. Simplesmente se julga que, por ser viciado, o sujeito não tem capacidade mental de fazer as escolhas certas para si, como se fosse um doente terminal, aguardando ansiosamente para ser tutorado. Graças a isso, poderiam ser abertos precedentes de todo tipo. É possível imaginar no que isso vai dar: eutanásia e aborto. Um caso perfeito de passa-boi-passa-boiada.

Tudo errado. O fato de um sujeito acabar com a própria vida não significa que acabará com a alheia, tampouco que irá colocá-las em risco. Garantir a liberdade do cidadão é, inclusive, permitir que ele acabe consigo mesmo, ainda que o Estado reprove. Se não houvesse nenhum interesse de promover a imagem do Poder Público, esta proposta seria a saída mais higienista de acabar com o livre-arbítrio de um viciado.

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