sexta-feira, 5 de março de 2010

Travessa


Cena de "Um cão andaluz", de Luis Buñuel


Dali a uma hora o terminal de ônibus estaria lotado. Felizmente, o seu chefe tinha dispensado os seus serviços às quatro. Já era esperado, já que causara tantos problemas na recepção do consultório. Segundos entregando currículos pelo Centro, fora admitida assim que ouviram sua história tão estória. Naqueles dias, estava cansada de bater perna naquela multidão atrás de pechincha e da baixa qualidade que vem de brinde. Cansava-se dos sujeitos atrás de balcões de compensado e lonas tomadas por muambas. Ali, depois de perder tempo ao olhar relógios obviamente falsos, comprou um par de pilhas para ouvir seu som no caminho até o terminal. Olhando para os lados, como quem faz algo de errado, certificou-se da provável ausência de ladrões, antes de tirar da bolsa o dinheiro. Igualmente desconfiada, pegou o troco virando o máximo possível sua mão, para não tocar a do camelô. Conferiu o troco agarrada à bolsa. O ambulante dera o dobro. Por engano. Saiu andando, como rosto revelando uma curiosidade súbita em uma vitrine opaca, e seguiu sem ao menos observá-la.

Sua impaciência estapeava o tamanco contra a calçada. A publicidade gritada, rimada, pouco convincente àqueles ouvidos, agora competia com a lembrança do que viria a fazer nos próximos dias. Lembrou. Agora, sua paciência costurava a massa confusa de barganhas, oportunidades e leve-um-pague-meio. Aplaudiu o salto no brilho do mármore. Entrara na loja pensando em sua mãe. O terminal estaria lotado em breve, mas não poderia cancelar aquela estranha troca: três notas e um punhado de moedas por um sorriso no rosto da mãe. Ela adorava. Aliás, o dia de todas elas chegaria, motivo que enchia os vãos nas calçadas com mais quinquilharias e gente. Gente que entope a cômoda das mães com porta-retratos de plástico espelhado. Imaginava o rosto da senhora refletido torto no retrato, a emoldurar aquela foto do fim do meio do álbum.

A nuvem de pensamentos e ideias se desfez. Sabia que logo viria um toró, por isso apressou-se a pegar os botões de rosas e o pequeno cartão. Embrulharia depois, só não sabia como. Avançara de encontro ao movimento contrário. Ganhava tempo ao ir para o asfalto, acompanhada por um teto nebuloso ainda mais escuro. Aos muitos sentia a fumaça que anuncia a proximidade do terminal. Correu para atravessar a rua ruidosa. O som dos motores engasgados no álcool misturava-se ao rasgado trovão que logo apertaria um punhado de gente aos limites do teto de cada ponto de ônibus da cidade. Inútil. Senão por cima, por baixo se molharia. Ilusão.

Abriu o zíper, com a mão vasculhou cegamente a confusão de currículos, panfletos amassados, papéis de bala e notas na bolsa. Viu uma em que tinha o telefone de seu pai. Pegou o cartão que comprou para sua mãe, e correu para o orelhão. Telefonou para o seu pai, avisando que passaria na casa da mãe. Trocou meia trúzia de palavras sobre ela, e correu para o ponto no terminal, despedindo-se do velho com "ahans" expressamente conclusivos e desinteressados em delongas. Vasculhou a bolsa mais uma vez para pagar o homem. Viu que esquecera o troco na floricultura. Faria falta? Depois das pilhas, não. Sentada no banco, pegou o aparelho que ganhara do ex e inseriu as pilhas vagabundas. O som do trovão e do motor ganhava mais um amigo para rugir nos seus ouvidos. E seja feita a santa trindade. Aos poucos, sentiu a condução em seu tempo, no ritmo dos tons, dos buracos das ruas; o balanço dos altos (e baixo), das pessoas com o frear no sinal. O motorista pisou no freio, na embreagem, acelerador, na distorção. Com vozes e esquinas dobradas, depois do cobrador tirar notas com uma moeda, alguns passageiros atentos dedilharam as cordas avisando o homem lá na frente que devia parar o compasso. Uma batida violenta e quebrada cadenciou o trânsito. Avançava um pouco e parava. E assim foi, com o ronco pigarreado do veículo, intercalado por vozes caladas aprisionadas em cada cabeça cansada, sem ao menos alcançar a boca e estalar na língua a indignação do congestionamento. Tsc.

O pobre diabo poderia ter batido noutro momento, assim não quebraria o tempo de tanta gente. Ou noutra avenida, noutra vida. Ave Maria, Pai Nosso, ia morrer de um jeito ou de outro, mas faria o favor de liberar o trânsito. O ônibus seguiria adiante, as pessoas atravessariam a cidade, uns de um lado para o outro e ele dá vida para a morte. Por duas horas, talvez, estivera de olhos fechados num sono sem sonhos. Contudo, tinha objetivos. Depois daquela tarde inútil, dera alguns passos atrás. Ia pedir conselhos para sua mãe. Queria ver seu sorriso. Talvez pediria desculpas. Fora desonesta consigo mesma, orgulhosa quando travava olhares contra o espelho. Tinha culpa por todos aqueles anos. Sabia que seu chefe vasculhara a mesa da recepção; e pela ligação, sua mãe já deveria saber. Afinal, sabia de tudo. Sabia da mesa recheada de currículos amassados, más impressões, jato do tinta, regrinhas da ABNT, acompanhados de panfletos anunciando o consultório, o vidro de tampa rosqueável lotado de uma multidão de balas. Ela sabia que sua mãe viera. Vinha sempre. De vez em quando ia ao centro da cidade, lá no trabalho dela, pegar os recados da mãe. Os mesmos conselhos... Aprendeu a acreditar naquele bando de besteira. Desde a separação dos pais, quando era bem pequena, admitia a decisão do juiz em visitá-la só uma vez por semana. Consolava-se que, num futuro próximo, empregada e estudada direito, ia morar com a mãe de uma vez.

Puxou a corda. Viu que, depois de muito balanço, no ouvido, não ouvira a grávida que há muito pedia o seu lugar. Lamentou consigo, massageando o ego ao pensar no bem que fizera a si mesma ao refletir sozinha sobre sua conduta e sobre os conselhos da mãe. Se estivesse de pé, o máximo de reflexão que teria seria o sexo do bebê da moça.

Com o breque, a grávida escapou. O ônibus freiou bruscamente, e ela descuidou sua mão do bastão perpendicular ao teto. Caiu de lado no chão, com o choque amortecido pelas pernas cambaleambulantes de outros passageiros de pé. Pensou em ajudá-la, mas exitou demais; chegara ao seu destino. Se algo tivesse lhe acontecido, ali mesmo, naquele ponto, poderia contar com o hospital. Rezou sussurrando, daquele jeito que só os ss e zz aparecem. Zzzz. Até porque, ali no chão poderia ser ela; sabia que Deus era justo e bom consigo. Desceu nervosa com os atrasos, e viu que naquela região a chuva ainda não havia chegado.

Abriu a bolsa, nem tão desconfiada como antes. Puxou as rosas, que na bagunça de papéis desavisaram os cegos dedos sobre os espinhos. O céu testemunhou. Ave Maria e Pai Nosso. Jesus. Ismael. Oxalá em São Paulo. E do céu caíram as gotas, competindo acirradamente com a gota de sangue que vertia do dedo, numa corrida interminável no ritmo dos santos. Quem tocou primeiro o chão não foi água, nem o sangue, nem vinho. Pode ter sido o cuspe do moleque, ou a cápsula do projétil que saiu do revolver, no outro lado da cidade. A grávida, lá no ônibus, queimou largada feio.

Assim a travessia se fez. A rua logo viraria rio, e água de baixo não se protege com guarda-chuva. Depois de pegar as rosas, seu destino seria o terceiro meio-fio, depois da ilha na avenida. Do Eixão pra Eusébio Matoso. Atravessou antes da água.

Entrou lá. O portão estava sempre aberto. Ia lá sempre, era conhecida. Os vizinhos olharam, enquanto ela caminhava até a mãe. Apertou os botões de rosa contra o peito. Apertou os espinhos na mão. A chuva apertou. Correu. Não da água, mas sim de ansiedade. Avistou! Era ela.

O sorriso era o mesmo. Nunca pôde ver aquele rosto. Não sentiu pêsames; era nova quando seus pais se separaram. As gotas pesadas lavavam a tumba, e o retrato espelhado com a foto de meio de álbum ficava cada vez mais gasto. Sua mãe não costurava multidões, ela passava, e sentia. Não ligava para troco. Não comprava. Só sorria, na lápide, acima do epitáfio que nunca teve. Ganhava flores com freqüência. Visitava uns, no centro, e passava uns recados. E ela lia, contente, imaginando como seu pai era feliz com a sua mãe antes do juiz decidir sobre a separação e a freqüência das visitas. Mais tarde, morariam juntos. Os três sabiam disso.

Ela caiu no ônibus. Súbito; tudo muito rápido, mais do que as mãos dos outros passageiros. Fora levada ao hospital, onde o martelo tocou a mesa, onde o corpo, com hemorragia interna, tocou a maca, onde os médicos foram os advogados de defesa. E a jovem estudante de Direito foi embora, deixando o bebê com complicações. A menina, que chorava seu nascimento prematuro, parecia reclamar a presença da mãe. Mas dali seria sempre guiada. O metal gelado do estetoscópio tocou o peito minúsculo e sadio. E eles ouviram a música compassada e acelerada, o bumbo batucando por baixo das finas costelas.

Sorria. Ela sorria. Não precisava de epitáfios. As rosas que se acumulavam, qual um jardim póstumo, serviam de mensagens sobre o amor tecido pela filha. Uma rosa valeu mais que mil lágrimas. Um sorriso valeu mais que mil rosas. A visita havia acabado. Não era aniversário, nem finados, nem dia das mães. E ela saiu da casa de sua mãe. Cruzou os mausoléus, as cruzes que jaziam sobre as costas de tantos, as que se firmavam na terra.

Naquele dia ia para casa a pé. Antes olharia para os dois lados, e atravessaria a rua. A água arrastava, brava. Porém, sabia que ia para a outra calçada. Olhando para os dois lados.

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