sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Recém-Casulo

E já estava ali, mal tinha espaço. Luz forte na cara, úmido com o suor da multidão. Arfava o peito espantado com o empurra-empurra. O som áspero das rodas nos trilhos riscava o ouvido e todos pareciam acostumados com isso. Mas a sensação era um incômodo inédito. Minha infância acordou assustada dentro de um adulto, apavorada e desengonçada num corpo maior. Uma criança agarrada a grades, as costelas. O desconcerto continuou até minha consciência ser eu de novo. Tomei ciência, respirei fundo e experimentei a estranheza daquele lugar. Estava passando debaixo de um rio, no metrô há vários metros da superfície. Carregava na mão uma tela preta brilhante, quase como uma televisão com a qual podia tocar com o dedo e mexer os brilhos, e notei que aquilo era importante pra mim. Fazia me sentir mais situado, mas não servia para me fazer completo. As pessoas cheiravam a um dia cheio, e o cheiro se escondia debaixo das roupas e do perfume barato. O suor era devolvido pelo ar condicionado fraco. Estranhei que eu era uma daquelas pessoas ocupadas, dispersas e curvadas. Ouvia programas de rádio sem rádio. Em volta, havia telas grandes mostrando imagens de Marte que um robô filmava e transmitia.

Percebi que tinha dormido pouco. Estava muito contente e lamentava que minha dose diária de ideias tinha seu vencimento no fim de todas as tardes, justo quando já não era possível usá-las para mim. Jovem, mas descalibrado e enferrujado.

E foi com isso que percebi que muito daquilo era um esforço desnecessário que competia contra mim mesmo. Estava escravo de necessidades alheias. Eu era grande em corpo. Do avesso eu era maior ainda, a soma de todos os anseios e possibilidades praticadas em folhas de sulfite e giz de cera, sem técnica, cargo, diploma, motivação ou dissídio. Aquela roupa, aquele decoro, tudo não passava de um rascunho que podia contornar a lápis e colorir como bem quisesse.

Mas não.

Vi que até minha ingenuidade infantil não cabia dentro do corpo adulto. Apertei a minha infância contra os demais passageiros, pesando sobre ela vários anos de flagelo e felicidade. Reduzi tudo a memórias e as coloquei de castigo. Com o freio do metrô na estação, segurei as velhas convicções para não cair e continuei meu caminho.

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Mais tarde, após sentar e rir com minha esposa vendo vídeos na internet, iria escrever sobre aquilo.

Só que nem lembrei.

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